Para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso primeiro compreender o arco histórico
A confusão sobre o convite-não-convite de Nicolás Maduro para a posse de Bolsonaro deu o que falar nos últimos dias. Maduro teria sido convidado pelo Itamaraty para a posse, a chancelaria da Venezuela recusou o convite, e em seguida Ernesto Araújo o desconvidou. É claro que a ditadura venezuelana deve ser rechaçada. Contudo, o uso constante do colapso venezuelano como arma ideológica é não apenas um equívoco, mas demonstração de profunda ignorância. São poucos os que realmente sabem alguma coisa sobre a história da Venezuela. Ao que parece, o próprio chanceler brasileiro prefere os espantalhos ideológicos a um entendimento sério de como o país chegou ao atual descalabro. Não é com desconhecimento que se faz boa política externa.
Começo lá atrás, no pós-guerra. Entre 1948 e 1958 a Venezuela era uma ditadura. Removido o ditador presidente Marcos Pérez Jiménez em janeiro de 1958, os três maiores partidos políticos do país – AD, Copei e URD – firmaram um pacto que ficou conhecido como Ponto Fixo (“Punto Fijo”). O pacto tinha como objetivo enraizar e proteger a democracia em um país que havia sido governado por ditadores praticamente desde sua independência, em 1830. O Ponto Fixo deu origem ao sistema bipartidário formado pela AD e pelo Copei que permaneceu em vigor até a ascensão de Hugo Chávez nos anos 1990. Durante as quatro décadas decorridas entre 1958 e 1998, a Venezuela foi essencialmente uma democracia estável, tendo chegado a ser um dos primeiros países latino-americanos a ser classificado como país de renda média alta pelo Banco Mundial.
Entre 1960 e 1977, a renda por habitante crescera mais de 30%, alcançando US$ 16 mil por pessoa. Contudo, entre o fim dos anos 70 e meados dos anos 80, a renda por habitante perdera todo o ganho anterior, passando de US$ 16 mil para pouco menos de US$ 12 mil. Ou seja, o país sofreu um colapso brutal do crescimento em virtude de vários problemas, inclusive da queda dos preços do petróleo. Colapsos dessa magnitude costumam estar associados a guerras e graves conflitos internos, o que não foi o caso da Venezuela. Até hoje estudiosos se debruçam sobre o dilema do crescimento venezuelano durante os anos 80 e 90.
A insatisfação popular com o desempenho da economia e a percepção de que o Ponto Fixo engessara o sistema político, com os dois principais partidos envolvidos em escândalos de corrupção e práticas clientelistas, abriram o caminho para que um militar de baixa patente tentasse um golpe de Estado em 1992 – sim, Hugo Chávez. O golpe falhou, mas em 1993 foi quebrada a hegemonia bipartidária com o enfraquecimento dos dois principais partidos. Após período de intensa turbulência entre 1993 e 1994, Rafael Caldera, um dos arquitetos do Ponto Fixo e da Constituição de 1961, presidente entre 1969 e 1974, foi novamente alçado à presidência.
Caldera foi sucedido por Chávez, vitorioso em 1998, ano em que as eleições foram marcadas pela ausência de partidos e de candidatos tradicionais. Os partidos haviam caído no mais absoluto descrédito. Chávez e os demais presidenciáveis de 1998 se posicionaram como indivíduos com clara posição antissistema, capazes de atender aos anseios do povo venezuelano. Chávez foi eleito em 1998 e horas após a vitória anunciou referendo sobre a reforma constitucional que seria a base de sua “Revolução Bolivariana”. A reforma foi aprovada e a Assembleia Constituinte foi formada com maioria chavista, dando a Chávez o poder de reescrever a Constituição que encerrou de vez o pacto Ponto Fixo. A nova Constituição, que ampliava o mandato presidencial de 5 para 6 anos, entrou em vigor pouco mais de um ano após a vitória de Chávez. Em 2000, anos antes da eleição presidencial prevista pela nova Constituição, Chávez conseguiu antecipar o pleito e se “reeleger” por seis anos. A partir daí estavam montadas as bases que permitiriam seu plano de permanência não democrática no poder.
Portanto, para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso compreender o arco histórico. É fácil demais plantá-la como espantalho para assustar ingênuos e desinformados, sobretudo no contexto brasileiro atual.
Tamanho desconhecimento em nada ajudará a política externa brasileira a dar conta do imenso desafio que a Venezuela de Maduro representa para a região. Dizem que o Brasil não é para principiantes. Menos ainda a Venezuela.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University