Todos se apoderaram de símbolos de seus países para traçar a linha que divide os lados.
Por acaso, este artigo vai para o site de ÉPOCA no dia 4 de julho. Não por acaso, este 4 de julho em especial não é um 4 de julho qualquer. Trata-se, sim, do Dia da Independência dos Estados Unidos, mas no Brasil não costumamos dar muita atenção a isso — ou não costumávamos. Sabe-se lá o que o clã Bolsonaro, em sua veneração deslavada por Donald Trump, resolverá tuitar amanhã. Pouco importa.
O que importa é que neste 4 de julho o atual presidente americano resolveu encampar a data historicamente apolítica para fazer um quase inédito discurso nos monumentos de Washington DC, bem como pôr à mostra tanques, aviões de caça e outras parafernálias militares. Desde que foi convidado por um recém-eleito Emmanuel Macron para participar das comemorações do Dia da Bastilha em Paris, a ideia de imitar os franceses não lhe sai da cabeça.
A diferença é que o Dia da Bastilha sempre teve essa tradição. Já aqui, com um discurso que inevitavelmente tocará em temas da campanha presidencial de 2020, a iniciativa de Trump é obviamente divisiva.
Age o presidente americano como outros líderes nacionalistas contemporâneos e passados.
Do lado de cá, os que defendem Trump, os patrióticos, a gente “do bem”. Do lado de lá, os críticos do presidente, logo os que rechaçam os símbolos nacionais. Soa familiar? Alguém aí com uma certa aflição de vestir a camisa da Seleção Brasileira e ser rotulado de defensor do “mito”? Alguém aí desconcertado com o que hoje significa a amarelinha, a canarinho? Em caso de resposta positiva, saibam que não estão sós.
A posse dos símbolos do país por líderes nacionalistas tem a intenção de causar precisamente esse grau de desconforto. Por óbvio, a posse dos símbolos do país divide e isola, marca com letra escarlate — no caso do Brasil a letra escarlate não é a letra A, mas a letra E de Esquerdista — os que pertencem a essa construção inventada, o lado de lá.
A eleição de Trump em 2016, mais do que o Brexit no mesmo ano, inaugurou a era do populismo-nacionalista. mbolle@edglobo.com.br Nessa “nova” era de passado marcado, o lado de cá, o “nós”, é composto por todos aqueles que compartilham a identidade do líder escolhido — sua raça, sua nacionalidade, seus valores. O lado de lá, o “eles”, é composto por todos os que podem até compartilhar raça e nacionalidade. Mas se não compartilham valores, estão definitivamente do outro lado.
O estrangeiro, que não compartilha a nacionalidade e muitas vezes tampouco a raça, está sem dúvida alguma do lado de lá. Por isso, o estrangeiro deve ser detido, contido, quiçá preso e maltratado como os pobres imigrantes da América Central aprisionados em condições desumanas nos centros de detenção de Trump. Se o estrangeiro é o lado de lá, o lado de cá precisa ser autossuficiente para não ter de lidar com ele.
Por isso o protecionismo como arma econômica. Por isso, também, alguma prudência macroeconômica, já que depender do investimento estrangeiro significa entregar-se a “eles”. Por isso o nacionalismo econômico que acompanha os movimentos populistas ultraconservadores da atualidade. Há “adversários” dentro das fronteiras, mas a maioria está fora delas.
A direita tosca brasileira até tentou encampar algumas dessas ideias. Se diz “antiglobalista” e já estampou a letra escarlate em todos aqueles que não aceitam a torpeza do marxismo cultural, da ideologia de gênero, do retrocesso ambiental. Mas as fragilidades da economia brasileira impõem limites a essa visão ignorante, ávida por rechaçar dados, fatos, especialistas, acadêmicos e a força das ideias.
O recém-anunciado acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul está aí para provar que até os mais fanáticos antiglobalistas sempre se dobrarão ante a realidade crua, ainda que para isso tenham de contorcer a própria falta de lógica para justificar as contradições, como fez nosso ministro das Relações Exteriores.
A resposta da UE ao populismo-nacionalista de Donald Trump tem sido contundente. Ainda que o bloco esteja repleto de problemas, ainda que a direita ultraconservadora tenha também se erguido por lá, desde 2017 a UE negociou acordos comerciais com boa parte do planeta e dos parceiros comerciais dos EUA, entre eles Canadá, Japão, México, Vietnã e agora o Mercosul.
Quatro de julho. Pretendo passá-lo escutando a “Ode à alegria”, de Beethoven, hino da UE.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Kopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics