Míriam Leitão: Presidência obcecada

Depoimento de Moro revela um presidente com obsessão em um cargo quando o país inteiro lutava contra a pandemia que ontem matou 600 brasileiros.
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Depoimento de Moro revela um presidente com obsessão em um cargo quando o país inteiro lutava contra a pandemia que ontem matou 600 brasileiros

A frase síntese dita pelo presidente – “você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma” – é reveladora da obsessão de interferência na Polícia Federal, mas não só. Mostra uma Presidência insana. Todos os graves assuntos de Estado para serem enfrentados, mas Jair Bolsonaro tinha uma preocupação. Era março, quando ele disse isso. A pandemia já estava infectando brasileiros. Em abril, quando ela se espalhou como uma grande tragédia humana, Bolsonaro aumentou a intensidade da pressão para nomear, a qualquer custo, o superintendente da PF no Rio de Janeiro.

No relato do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal, o que impressiona é o conjunto e o contexto. O presidente briga, é capaz de derrubar uma peça-chave de seu governo, para escolher o superintendente da PF no Rio. Enquanto os governadores e prefeitos decidiam pelo isolamento social, construíam hospitais de campanha, ampliavam o número de UTIs, tentavam encontrar respiradores em qualquer lugar do planeta, as empresas doavam, as pessoas se mobilizavam, os profissionais da saúde iam para o campo de batalha, alguns para morrer, o que fazia o presidente do Brasil? Ofendia governadores, fritava o ministro da Saúde, encurralava o ministro da Justiça, participava de manifestações contra a democracia e continuava querendo interferir na Polícia Federal.

As versões do presidente para os fatos não ficam em pé. Ele diz que buscava apenas relatórios de inteligência na Polícia Federal. Ele sabe a esta altura do mandato a diferença de inteligência policial e inteligência estratégica. O presidente tem a Abin que dá informação de inteligência estratégica. Faz parte do SISBIN, Sistema Brasileiro de Informações.

Todos alimentam esse sistema, inclusive a Polícia Federal. Tudo deságua no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que manda relatórios diários para a Presidência. Neles, se pode saber antecipadamente os riscos de fatos como, por exemplo, uma pandemia, para agir preventivamente. Somente ontem, a propósito, mais 600 brasileiros perderam a vida. Um perito no assunto me explicou que “quando a inteligência policial produz algo de interesse estratégico para o Estado, isso é pinçado pelos analistas da Abin para o relatório ao presidente”. E ele conclui: “Mas o presidente da República não tem nada com a inteligência policial”, ou seja, a parte investigativa, judiciária. Ele não tem que ter acesso a uma investigação da polícia judiciária.

Bolsonaro parecia naquele lamurioso pronunciamento, do dia 24 de abril, ter sido surpreendido pela demissão de Moro apresentada numa coletiva à imprensa. Ofendido com a “traição”. O relato circunstanciado de Moro mostra que o presidente já sabia que a saída dele era fato consumado, inclusive porque ele, Bolsonaro, o jogou para fora do governo.

Enquanto Bolsonaro trava uma guerra contra o seu ex-ministro, na economia, as notícias vão de mal a pior. A produção industrial despencou 9,1% em março, vindo abaixo do esperado, com uma queda de 3,8% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Nesse tipo de comparação, foi o quinto recuo consecutivo, o que mostra que o setor já não vinha bem muito antes da chegada do vírus. No início da noite, a Fitch, uma das três maiores agências de rating do mundo, colocou sob viés negativo a nota do governo brasileiro. Disse que houve piora dos quadros econômico e fiscal, e citou a renovação da crise política, “incluindo as tensões entre o executivo e o congresso e as incertezas sobre a duração e a intensidade da pandemia de coronavírus”. O Brasil atualmente é classificado pela agência como BB-, a três degraus do grau de investimento. Agora, está mais próximo de um novo rebaixamento.

Moro não pode se dizer surpreso. Foi para o governo Bolsonaro sabendo que seu ex-chefe jamais fora um combatente anticorrupção, que viveu anos em partidos cujos integrantes ele mesmo condenou. Quando Moro diz que não está acusando o presidente de crime, ele está se protegendo no campo que entende muito bem. Mas que crime o presidente pode ter cometido, isso dependerá da capacidade de investigação da Polícia Federal. Os ministros terão que depor e, ao contrário do presidente, não têm o direito de fazê-lo por escrito. A propósito, me disse ontem um procurador, essa prerrogativa do presidente nem deveria existir.

“Depoimento tem que ser oral.” Hoje, Bolsonaro é um homem acuado. Só resta a ele a grosseria de mandar a imprensa calar a boca. Não será atendido.

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