Documento derruba o mito de que Geisel foi um ditador melhor que outros. Falta a esquerda abandonar a defesa do seu projeto econômico. Perigosos são os tempos em que um país começa a esquecer seu passado, porque pode ser o primeiro passo para repetir erros fatais. O documento encontrado pelo professor Matias Spektor chega na hora exata para reavivar memórias e ensinar aos que não viram. Não existe a figura do bom ditador. Na democracia, se tem bons e maus governos, mas na ditadura só existe mesmo o pior, sem atenuantes.
Havia duas ilusões sobre o general Ernesto Geisel. A de que ele foi bom na economia pelos planos de desenvolvimento e fortalecimento da empresa nacional. E a de que ele enfrentou a linha dura e teria sido surpreendido por mortes que aconteceram até dentro dos quarteis do Exército durante o seu governo, como a de Vladimir Herzog, e que reagiu a elas demitindo generais.
Sobre o segundo mito, o professor Spektor jogou a última pá de cá. O jornalista Elio Gaspari, em sua colossal obra, já avisara de diálogos estranhos, por isso de certa forma sabíamos o que agora fica inegável. Ernesto Geisel fez parte da linha de comando que matou Herzog e tantos outros durante o seu governo. O Palácio do Planalto abrigou conversas nas quais se decretou a morte de brasileiros. Não havia a turma dos porões e a turma moderada. Havia os porões e todos sabiam e concordavam. A briga com os generais Ednardo D’Ávila e Sylvio Frota foi disputa de poder simplesmente, sem o mérito de proteger vidas ou projetos. O general Figueiredo, que com seus maus modos conduziu a parte final daquele período longo e triste da vida nacional, era diferente de Geisel apenas no estilo, mas os dois foram cúmplices em assassinatos.
Nos tempos de hoje há falas enviesadas de generais, inclusive do comandante do Exército. Os militares, perto da aposentadoria, falam para seus redutos para serem bem recebidos nos clubes da reserva que passarão a frequentar. Do general Eduardo Villas Bôas, que merece meus respeitos pela maneira corajosa como enfrenta uma doença terrível, se esperava neste momento palavras claras de rejeição ao passado das Forças Armadas. No entanto, ele tem falas dúbias que nunca esclarecem o que realmente quer dizer. Essa ambiguidade do comandante do Exército só fortalece os que vendem uma visão positiva dos governos militares. Há um pacto entre os militares da reserva e os comandantes da ativa na defesa da narrativa dos supostos méritos da ditadura. Se existe o pacto é porque dentro das Forças Armadas jamais foi feita autocrítica. Não houve atualização do pensamento dos quarteis, existe uma cadeia de transmissão da versão de que eles salvaram o Brasil, tiveram que endurecer, mas estavam certos. A jovem oficialidade não é diferente dos generais aposentados. A mesma ideologia é repetida, ano após ano, desde os colégios militares.
Existem hoje em dia os que se encantam com o candidato que defende torturadores e que exibe dedos engatilhados vendendo a ideia de que tiros vão matar os problemas do país. A democracia comporta visões diferentes, e por isso nada há de errado em ser de direita. É possível ser conservador e democrático. O problema é que está sendo estimulada a direita que defende a ditadura e seus crimes.
A esquerda brasileira sempre teve a vertente que gosta do projeto econômico dos militares. Nesta visão equivocada, os militares teriam sido nacionalistas e desenvolvimentistas. A esquerda acaba de repetir, no poder, alguns desses erros, como as doações de recursos públicos para empresários, supondo que eles liderariam o desenvolvimento nacional. Foi assim nos governos Médici e Geisel, foi assim nos governos Lula e Dilma. O projeto econômico dos militares deixou um país com dívida externa impagável, inflação acelerada e indexada, empresas que receberam muito dinheiro e quebraram mas enriqueceram seus donos, grandes projetos agressivos ao meio ambiente, e a renda ainda mais concentrada. Do mito econômico a esquerda deveria se livrar rendendo-se aos muitos fatos e dados. O mito de que o general Geisel foi um ditador melhor do que os outros acaba de ruir. Tarda demais o momento de abandonar ilusões autoritárias. Não existem matizes e nuances em um governo ditatorial. Ele nunca é meio bom. Ele é o que é: o pior que pode acontecer a um país.