Míriam Leitão: O que fazer com as cinzas

É tão simbólico que grita. O incêndio do Museu Nacional em momento de tanta confusão sobre quem somos nós parece deliberado. E de certa forma é. Queimamos o nosso passado, ignoramos o nosso futuro e ficamos prisioneiros do redemoinho presente.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

É tão simbólico que grita. O incêndio do Museu Nacional em momento de tanta confusão sobre quem somos nós parece deliberado. E de certa forma é. Queimamos o nosso passado, ignoramos o nosso futuro e ficamos prisioneiros do redemoinho presente. Os brasileiros choram hoje sobre as cinzas e se perguntam como recuperar o patrimônio perdido. Irrecuperável, dizem os especialistas e cada um de nós sabe que é verdade. Mas haverá um amanhã depois do incêndio.

O meteorito sobreviveu, mas não a história do Brasil. E o que fazer agora? Na manhã do dia seguinte tudo o que se sabe é que o próprio prédio pode ruir. Perdeu-se um patrimônio da riqueza natural, da história que vivemos e do que houve nos milhares de anos antes de começarmos a construir o que podemos chamar de civilização brasileira. Anda Luzia. E agora? A presidente do Iphan anunciou que “Luzia morreu”. Ela resistiu por milhares de anos, mas não sobreviveu a nós. E teremos que explicar isso aos estudantes, porque museu é parte da educação de um povo.

Neste tempo da perplexidade é inevitável pensar no simbolismo de tudo isso. De certa forma, o Brasil sempre ignorou seu passado. Durante muito tempo preferimos fazer blague sobre os personagens fundadores do que somos, preferimos jogar luz sobre os maiores defeitos de cada personagem e não seus acertos. Rimos dos exotismos, e não valorizamos as sagas. Nas viagens ao exterior, visitamos museus e reverenciamos a história alheia. Mas aqui, deixamos para ir aos museus de arte ou de história em outro momento. Afinal, eles estarão sempre ali. E quando chegam as notícias, parcas, esporádicas, de que a manutenção do patrimônio está precária, lamentamos e vamos cuidar da vida. Há tantas emergências, o passado fica para depois.

Na noite de domingo, muita gente chorou vendo chamas poderosas nos aplicando castigo irrecorrível. O fogo não deu segunda chance.

Na manhã do dia seguinte, acordamos desamparados, sem identidade, sem uma parte de nós. Mas precisaremos entender o que houve, onde foi que erramos tanto e tentar prevenir novos desastres. Há um patrimônio ainda a preservar e isso deve envolver todo mundo, cidadãos, empresas, instituições, governos.

Não adiantará culpar um governo, mas todos; uma pessoa, mas todas; os outros, mas cada um de nós. E mais do que culpar é preciso refletir e entender. Ainda é cedo, é o momento do choque da perda abrupta, total e inesperada. Só há uma forma de começar de novo: é pensar no que fazer com os outros museus e sítios históricos, com o patrimônio natural que permanece, com os fatos passados que ainda não entendemos.

Há países em que as empresas abraçam constantemente a história para a recuperação e a manutenção. Podem dizer que fazem isso porque depois descontam no imposto de renda. Pode ser. Mas aqui os governos dão cada vez mais dinheiro para as empresas, reduzindo os tributos de forma aleatória, sem que haja qualquer contrapartida. Os grupos econômicos recebem por receber, só para aumentar seus lucros, apenas porque dizem que irão embora para outro país se nada receberem, ou estão com a existência ameaçada pela concorrência externa. Quase não há mecenas e benemerentes, nem grandes, nem pequenos.

Há outros erros. Nos momentos de cortes, a Cultura é o ponto em que a tesoura vai em primeiro lugar. Nos momentos em que a austeridade é necessária, nunca escolhemos os gastos certos. O dinheiro do BNDES era pouco, alguns milhões, que bom que foi liberado, mas chegou tarde para o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Inevitável a comparação com a presteza dos bilhões que foram engordar os bois nos pastos, e as contas bancárias de alguns.

Dona Leopoldina era criticada e chamada de “imperatriz deselegante” porque, a cavalo, de camisa e calça masculinas, saía em busca de pedras e plantas raras para começar a construir o acervo científico nacional. Isso foi no princípio. No domingo vimos o fim, o que fizemos com o trabalho dela e de milhares de outros pesquisadores que buscaram nossas raízes, que conservaram relíquias, que escavaram o chão atrás do passado. O meteorito sobreviveu a nós, porque é capaz de resistir a todo tipo de desaforo na sua viagem incandescente até a terra. O país terá que procurar nas cinzas o resto do seu passado. E nesta hora do luto, precisará entender o que fazer no tempo do recomeço com o patrimônio que ainda temos.

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