Míriam Leitão: O limite entre as ruas e o governo

As ruas são livres para gritarem o que quiserem, mas o governo não pode ecoar ou estimular os discursos extremos e antidemocráticos.
Foto: José Dias/PR
Foto: José Dias/PR

As ruas são livres para gritarem o que quiserem, mas o governo não pode ecoar ou estimular os discursos extremos e antidemocráticos

Quem foi para a rua, mesmo para criticar as instituições democráticas, tinha o direito de estar lá. Na democracia, essa liberdade é consagrada. A questão a discutir não é o ato em si, mas toda a ambiguidade que está presente em alguns atos e palavras das autoridades. O presidente Jair Bolsonaro que considerou legítimas as manifestações de domingo chamou de “idiotas” os que fizeram os protestos do dia 15. São dois pesos, duas medidas. Ele não foi, mas deu um mote enviesado quando divulgou, dias antes, texto em que sugere que está sendo impedido de governar, e ontem ao falar que o movimento fora “um recado contra aqueles que teimam nas velhas práticas”.

Bolsonaro deixa subentendidos demais quando fala sobre a relação com o Congresso. Dá a entender que seus problemas são derivados de os políticos o estarem pressionando para usar a moeda da corrupção nas negociações para formar uma coalizão. E essa mensagem esteve presente nos atos de domingo, personificada no ataque direto ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Já as críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) estiveram presentes até na boca de parlamentares do partido. O deputado estadual Filippe Poubel (PSL-RJ) repetiu a frase do terceiro filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo só precisa de um soldado e um cabo.” O senador Major Olímpio (PSL-SP) ameaçou: “Nos aguarde STF.”

Isso não quer dizer que a maioria dos que foram às ruas tinha esse objetivo, mas o fato de ser dito em alto e bom som por parlamentares do partido do presidente não pode ser subestimado. A democracia aceita protestos contra as instituições que a sustentam, mas essas falas, entre tantas outras, mostraram que o governo Bolsonaro flerta frequentemente com a ameaça à democracia.

O país está diante de uma situação difícil. A economia não deslancha, a confiança dos empresários e operadores de mercado está em queda livre, as contas públicas estão com forte déficit. Além disso, é necessário passar pelo Congresso matérias complexas, como a reforma da Previdência, o crédito suplementar de R$ 248 bilhões, a mudança na lei de teto de gastos para permitir o acordo com a Petrobras e a distribuição dos recursos. Se não tiver um bom diálogo com o Parlamento, o Executivo pode enfrentar derrotas e alterações indesejáveis nos projetos.

A manifestação não foi tão grande que tivesse dado a Bolsonaro o capital político extra com o qual ele sonhava. Mas foi relevante. E poderia até fortalecer as reformas, se Bolsonaro demonstrasse empenho em construir uma maioria para aprová-las. Ele estimulou a ida às ruas para dar uma resposta aos protestos contra os cortes na educação. Não foi por entusiasmo com a mudança da Previdência. Como ele já disse várias vezes, se pudesse, não faria a reforma.

O grande problema tem sido a dificuldade de o presidente Bolsonaro entender que quem é eleito governa, quem não tem maioria tem que negociá-las, quem comanda o Executivo precisa defender seu projeto diariamente. Que as redes sociais sempre serão uma forma subsidiária de comunicação e que o tempo de suas declarações irresponsáveis — quando era apenas um parlamentar de desempenho pífio — encerrou-se quando foi escolhido para liderar o país nas últimas eleições.

Nas manifestações de domingo havia pessoas defendendo suas convicções. Excelente. Foi para isso que o país lutou contra o período ditatorial que por tanto tempo reprimia, muitas vezes com violência, qualquer passeata, e que editou um Ato Institucional que proibia reuniões políticas. A democracia aceita até que se manifestem os saudosistas do tempo em que a liberdade foi cerceada. Mas cabe às lideranças do país tomarem precauções para não incentivar um tipo de ataque às instituições como algumas que foram vistas nas ruas de domingo. Pedir o fechamento do Supremo, demonizar qualquer negociação política como sendo pressão pela “volta das velhas práticas”, afirmar, como fez Bolsonaro, que é preciso “libertar” o país é atravessar uma linha que não deve ser transposta numa República que teve duas ditaduras nos últimos 90 anos. Que as ruas falem sempre o que quiserem, mas que os governantes tenham a lucidez de não ecoarem os extremos.

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