Míriam Leitão: O inesperado caminho de Biden

Joe Biden parecia a pessoa errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e, como ele mesmo tornou público, foi gago.

Joe Biden parecia a pessoa errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e, como ele mesmo tornou público, foi gago. Além disso, foi acusado durante as primárias — época de explicitar divergências partidárias internas — de ser próximo demais de republicanos. Ele venceu as eleições contra o presidente que mais usou a presidência para os seus propósitos eleitorais. Onde foi que ele acertou?

Ele acertou em chamar Kamala Harris para a sua chapa. Ela representa um outro patamar no nível de representatividade que toda democracia deve almejar. Primeira em muitos quesitos. Mulher, negra, filha de um latino e uma asiática, casada com um judeu. Quando ela se sentar na sala de vice-presidente dos Estados Unidos muitas barreiras estarão sendo superadas. Com Kamala se retoma também a caminhada dos negros para uma sociedade de iguais. À eleição de Barack Obama se seguiu um movimento radical no sentido oposto. O presidente Donald Trump é supremacista, como tornou evidente.

Joe Biden acertou em ser ele mesmo. A empatia que todos dizem ser da sua natureza foi mostrada na campanha. E esse era um elemento que faltava na política do país mais atingido pela pandemia de Covid-19. Seus dramas pessoais foram muitos e são conhecidos. Ele os expôs na medida certa. A morte da mulher e da filha bebê, seu esforço para ser pai e mãe dos filhos pequenos na viuvez e manter seu mandato de senador, o golpe da morte do filho Beau de câncer no cérebro. Até o fato de ser gago foi mostrado na história de um menino a quem ele tem estimulado na superação da dificuldade. Enfim, ele não era o super-homem que enfrentaria o mal. Era mesmo o Joe.

Ser normal diante de tanta anomalia trumpista foi um ativo. Mas houve outros improváveis caminhos do sucesso. Na primeira vez que tentou disputar as primárias, era jovem, pouco mais de 40 anos. Na segunda vez, perdeu para Barack Obama e virou seu vice e amigo. Agora não seria tarde demais? Os avanços da ciência nos trouxeram a longevidade, mas a pandemia, subitamente, mostrou aos mais velhos o quanto eles são vulneráveis. O candidato expôs esse sentimento misto. É um veterano ainda em busca do seu sonho maior, mas ao mesmo tempo fez uma campanha cuidadosa, sem aglomerações, com uso insistente de máscara. Foi até alvo de deboche de Donald Trump por usar supostamente máscaras enormes. Joe Biden mostrou saber que a vida é frágil. Um sentimento que compartilha com tantos num país em que o vírus contaminou 10 milhões, atinge mais de 100 mil todos os dias e matou 240 mil pessoas. Só na semana passada, os EUA tiveram 650 mil novos casos, mais do que a Alemanha durante toda a pandemia.

Biden acertou em costurar uma coalizão agregando forças dentro do partido e na sociedade. Sua campanha atraiu independentes e até republicanos, o que mostrou uma capacidade de diálogo que será muito exigida nos próximos e difíceis anos que os Estados Unidos têm pela frente no trabalho de reconstrução. Destruir é fácil, e foi a essa tarefa que se dedicou Donald Trump. Ele demoliu muitas pontes com países aliados. Hostilizou o Canadá, tratou de forma arrogante países europeus, a tal ponto que a chanceler Angela Merkel disse que até agora não entendeu como os americanos escolheram Trump. Biden terá que buscar os organismos multilaterais maltratados e acordos abandonados por Trump. E, nesse caminho, nós sempre teremos Paris. O Acordo de Paris.

No primeiro debate, Trump parecia ter engolido Joe Biden. Era o comunicador agressivo que impunha sua hora de falar, contra o homem que parecia travar em certos momentos. Quem estava certo? Qual é a melhor estratégia na eleição e na vida? A vitória eleitoral de Joe Biden inverte a avaliação sobre o que é sucesso. A vitória não é impor-se. É convencer. Sem a capa da invencibilidade que o seu adversário exibe, Joe Biden derrotou o maior perigo que já rondou a América.

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