Falsificadores de passado inventam virtudes para a ditadura de 64
Foi exatamente há 54 anos que começou a noite de 21 anos sobre o Brasil. Hoje, mais de meio século depois, o país que guarda mal sua memória é vulnerável aos falsificadores de passado e vai se espalhando a ideia de que foi um tempo sem corrupção, com segurança e com crescimento econômico. Não é verdade, na ditadura houve corrupção sem apuração e crise econômica.
É triste ter que recontar os ocorridos daqueles anos do regime militar como se fosse preciso ainda convencer de que houve o que houve. Tortura, morte, desaparecimentos políticos, exílio, censura, cassação de mandatos de parlamentares pelo crime de opinião, aposentadoria forçada de ministros do Supremo e catedráticos, proibição de que estudantes frequentassem a universidade, suspensão do direito de reunião e manifestação, anulação do habeas corpus e de outros direitos constitucionais, fim das eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos das principais cidades. Era um tempo horrível.
Hoje há um esforço deliberado de se reescrever esse passado com mentiras para convencer os jovens de que aquele foi um tempo de paz interna, contestada apenas por alguns poucos “comunistas”. Há um grupo que inclusive escolheu como seu líder o torturador símbolo Brilhante Ustra, proclamado herói de certo candidato. Houve recentemente até um assessor do candidato que propôs que as versões do torturador e de seus torturados são equivalentes. Qual dos dois lados falou a verdade? Perguntou. Ora, ora. É preciso poupar-se de todos os fatos ocorridos para ter essa dúvida, inclusive a evidência de que 40 dos torturados morreram no Doi-Codi de São Paulo comandado por Ustra. Se morreram, não foi por bons tratos.
É triste ter que voltar mais de meio século e recontar a história como a história foi, para ter que lutar de novo contra a narrativa dos militares daquele tempo construída com censura à imprensa. Deveríamos estar inteiramente dedicados a pensar o futuro e a superar os muitos desafios do presente. Nossa democracia é imperfeita, passa por crises e isso cria o ambiente fértil para se edulcorar esse passado, desprezível em todos os aspectos.
Na democracia ideal muita coisa que nos acontece hoje não deveria estar ocorrendo. Não haveria tiros ou pressões contra a caravana de um candidato, como acaba de acontecer com Lula. As decisões da Justiça seriam entendidas como decisões da Justiça, e não como golpe. O foro privilegiado não deveria ser o escudo no qual bandidos se abrigam. Não se discutiria se um condenado em dupla instância deveria ou não cumprir pena. Não haveria cenas de pugilato verbal no Supremo. Principalmente não ocorreria o assassinato de uma jovem e promissora vereadora no mesmo centro do Rio, onde, na ditadura, foi morto o jovem Edson Luís há 50 anos.
Em qualquer democracia há divisões. É da natureza das democracias serem cheias de diversidade. O pensamento único só cabe numa ditadura em que as vozes discordantes são caladas pela violência política. Mas é doloroso ver que os debates naturais se transformaram em agressões grotescas entre grupos que têm projetos e versões diferentes. Mas será na democracia que corrigiremos seus erros e temos tido muitos progressos, como o de, pela primeira vez na história, o país estar enfrentando a corrupção com extrema coragem.
O dia 31 de março, há 54 anos, inventou uma noite que durou duas décadas. Nela não era possível divergir, combater os crimes de poderosos, protestar contra a crise econômica. No começo da década de 1980, nos últimos anos daquela noite, o Brasil estava quebrado, com dívida externa impagável, em recessão, desemprego alto, a inflação subia estimulada pela correção monetária criada nos governos militares. Foi a democracia que tirou o país desse buraco, desarmou a bomba inflacionária, renegociou e pagou a dívida. Precisou de 10 anos para superar esse difícil legado. Nos anos seguintes, a democracia se dedicou a resgatar brasileiros da pobreza extrema.
Os dias podem nascer nublados, chuvosos ou ensolarados. Mas é neles que o país construirá o futuro. Mesmo que pareça tão desconcertante e difícil o tempo atual. A noite, aquela noite, passou. E tem que ficar no passado.
* Foi o ministro Celso de Mello que votou pela prisão domiciliar de Jorge Picciani, e não Ricardo Lewandowski.