Míriam Leitão: O desalento

No meio das palavras feiosas em que vive imerso o mundo da economia, há uma elegante e profunda: desalento. É bonita, mas batiza um dos fenômenos mais dolorosos do mercado de trabalho, aquele estado em que o trabalhador desiste de lutar. Esta semana foi divulgado o número do desemprego por desalento, são 4,6 milhões de pessoas, um aumento de 195% desde 2014.
Foto: O Globo
Foto: O Globo

No meio das palavras feiosas em que vive imerso o mundo da economia, há uma elegante e profunda: desalento. É bonita, mas batiza um dos fenômenos mais dolorosos do mercado de trabalho, aquele estado em que o trabalhador desiste de lutar. Esta semana foi divulgado o número do desemprego por desalento, são 4,6 milhões de pessoas, um aumento de 195% desde 2014.

Imagine a pessoa por trás dessa estatística. Ela procurou emprego, saiu dias a fio de casa com essa esperança, ficou numa fila de entrevista, mandou currículo e aguardou em vão a resposta, ouviu desculpas polidas e frias informando que poderia ser contatada em caso de necessidade. Foi barrada no escasso mercado de oferta de vagas por ser mulher, por ser preta ou parda, por morar longe ou em área de risco, por ser pobre, por ser considerada velha demais, por ser vista como jovem demais e sem experiência, por ter estudado pouco ou por estar mais qualificada do que o exigido. Ao voltar para casa, nunca tinha boa notícia. Foram dias, meses e anos. Foi desanimando aos poucos, foi perdendo a autoconfiança, um dia desistiu e parou de procurar. Esse é o fenômeno que o indicador pesquisa.

O retrato que o IBGE divulgou esta semana é a mais ampla análise do mercado de trabalho. É como se fosse uma foto que revelasse três camadas superpostas do problema. Acima, na superfície, estão os desempregados. São pessoas que procuraram emprego no último mês e não encontraram. São 13,7 milhões de pessoas na média do trimestre, 487 mil a menos do que no mesmo trimestre do ano passado. É um número imenso, mas essas pessoas ainda lutam. Há um segunda camada e já é uma parte meio submersa do problema. A pessoa conseguiu trabalho, um bico, um quebra-galho, um meio expediente, um serviço temporário, mas quer e pode mais. Trabalha menos do que está disponível. Aceitou o que apareceu. São 6,2 milhões de pessoas. Depois vem a camada mais profunda da desorganização do mercado de trabalho, o desalento. Este é o desemprego realmente oculto. Se a pessoa não procurou trabalho, ela não é considerada desempregada. Saiu da estatística. Está nessa situação uma multidão maior do que as populações de Belo Horizonte e Curitiba somadas.

No final de 2014, o Brasil tinha 6,5% de desemprego, 6,4 milhões de pessoas. Hoje é mais do que o dobro. A recessão estava começando, mas a máquina de destruir emprego já havia sido ligada e devastaria milhões de vagas a partir de 2015. Mesmo naquela época que parecia ser um bom momento, havia um milhão e meio de pessoas em desalento.

Há muito a fazer para tornar mais dinâmico o mercado de trabalho em um país com maioria de jovens e crianças na era das mudanças radicais do século XXI. Agora o Brasil está diante da terra arrasada provocada pela recessão. Quando o país retomar o crescimento, o problema diminuirá e o alívio pode tirar o tema de pauta. Isso será um erro, porque a busca por maiores possibilidades para os trabalhadores brasileiros pode ser a chance de superação de vários obstáculos. Pode ser o fio condutor para a modernidade.

O investimento em educação de qualidade é a etapa primeira — e incontornável — para enfrentar o problema. A educação preparará os jovens para um mercado de trabalho mais desafiador, em que tarefas repetitivas serão feitas por computadores e robôs. Precisamos do melhor das nossas mentes. Leis trabalhistas mais flexíveis serão parte importante dessa atualização, mas a reforma terá que ser feita realmente de olho no futuro do emprego. O combate à discriminação e ao preconceito é outra tarefa fundamental para um novo mercado de trabalho. Quem olha os números por dentro vê as cicatrizes deixadas por um país que discrimina mulheres e negros. Eles ganham menos, ascendem com mais dificuldade na estrutura corporativa. O preconceito fere pessoas, mas fere também a economia. Ela seria mais dinâmica sem as barreiras artificiais construídas pelo pior dos motivos, aquele que julga as pessoas pelo seu gênero ou por sua cor.

Na luta contra o desemprego o Brasil pode encontrar o caminho do seu próprio resgate. As tarefas que abrirão vagas e oportunidades são civilizatórias. Sem isso é o país que estará em desalento, desistindo de buscar seu futuro.

(COM MARCELO LOUREIRO)

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