A hierarquia no Itamaraty, como nas Forças Armadas, é a forma de transmitir experiência. Quebrá-la é um risco
A crise no Itamaraty é muito mais do que as ideias exóticas defendidas pelo chanceler Ernesto Araújo, na intenção de agradar ao presidente. Fosse só isso, a chancelaria saberia como lidar com o assunto. O pior problema é que ele quebrou a hierarquia dentro da instituição que, a exemplo das Forças Armadas, precisa dela. “Os diplomatas, assim como os militares, funcionam sob instruções, que vêm de alguém mais qualificado, por isso ele tem legitimidade para transmiti-la”.
Essa explicação dada por um diplomata reflete o coração do dilema atual. Mudar isso é subverter a lógica interna mais profunda, com efeitos imprevisíveis. Não bastou ao ministro Ernesto Araújo chegar ao primeiro posto sem ter comandado embaixada. Ele se cercou de pessoas que também não tiveram essa experiência. É normal que o ministro queira ter seu próprio time, mas como ele se deixa levar pelo fígado, acabou não criando uma diversidade nesse grupo.
— Nunca houve uma situação em que tantas pessoas mais graduadas estivessem sob o comando de gente de nível hierárquico inferior. Você ser embaixador lhe confere uma outra experiência. A chefia de posto mostra como são as coisas na prática. É normal ter um ou outro dirigindo uma subsecretaria sem ter chefiado uma representação, mas aí ele ouvirá os outros, que já comandaram postos, sobre como proceder. Assim funcionam os check and balances internos. Mas é inédito ter todos os subsecretários sem esta experiência — informa um integrante da Casa.
Tenho conversado com diplomatas que estão fora do Brasil. Eles relatam que andam confusos. As instruções não chegam. As que chegam ignoram nossas posições ou a natureza das instituições internacionais. O que acontecerá com a postura conservadora do governo em relação à mulher? Com todos os problemas que o país tem nesta área, o Brasil sempre teve uma posição de vanguarda, na área de direitos humanos e direitos da mulher.
— O que faremos agora? Se vamos abandonar a posição tradicional e os aliados naturais nesta questão, vamos ficar com quem? Com os árabes? Eles têm todo um passivo na área de direitos da mulher — avalia um diplomata brasileiro.
Há questões concretas acontecendo neste momento que criam paralisia nas representações e impedem o diálogo entre os mais experientes com os menos experientes, porque tudo é visto como uma cruzada entre o passado pecaminoso e o futuro virtuoso que será inventado agora. Isso leva ao improviso, que é um perigo em relações internacionais. Na diplomacia regional, a grande lição do Itamaraty sempre foi a de evitar conflito. Temos dez vizinhos com fronteira seca. Tudo é muito delicado.
A chancelaria brasileira sempre foi considerada um exemplo, tanto na América Latina quanto no mundo. Uma das razões é que foi capaz de criar um corpo coeso, no meio das diferenças de opinião, ou de níveis na carreira, para defender os interesses nacionais, conjugando aspectos políticos e técnicos. O Itamaraty sempre fez esforço de qualificar seus quadros nos inúmeros temas técnicos. Há as questões econômicas, de investimento, ambientais, de política comercial, de tecnologia, de energia. Vários outros. Normalmente, o Itamaraty integra grupos interministeriais para negociações que exigem capacitação técnica. O próprio Ernesto Araújo fez parte da negociação de tarifas no começo da sua vida profissional. E seus colegas o descrevem como um diplomata focado e sem qualquer das ideias que exibe hoje. Ouvi pessoas que estiveram com ele em etapas diferentes da carreira. Foram unânimes em dizer que ele mudou. As ideias que proclama hoje foram aquisição recente. Vieram-lhe à mente no momento oportuno para agradar aos novos poderosos.
Ernesto Araújo realizou sua ambição. O problema é o que ele fez em seguida, com uma reforma ainda não totalmente implantada, mas que já concentrou tarefas de forma excessiva em algumas áreas. Há perseguição interna, caça às bruxas, discurso ideológico. A grande questão, contudo, é a quebra da hierarquia, porque rompe-se o fluxo de transferência de conhecimento e experiência. Não se consegue ter uma boa imagem externa, com a frente interna desorganizada. É fácil posar de inovador. Mas o risco é quebrar a estrutura da instituição, e o temor é que isso esteja em curso.