O agronegócio brasileiro precisa entender o século XXI. Nele, para ser global, é indispensável não ter a marca de quem produz destruindo o meio ambiente. Essa ideia tão cristalina ainda não foi entendida, como mostram as propostas defendidas pelos seus representantes no Congresso. A última é de uma Medida Provisória para arrendar terras indígenas.
O governo nega que fará a MP, mas a pressão dos ruralistas está crescendo. Imagine se um dos muitos concorrentes que o Brasil tem na sua bem sucedida expansão internacional fizer sua campanha contra nós explorando esse ponto? O agronegócio brasileiro exporta US$ 100 bilhões. É fundamental para a economia brasileira. Mas no setor convivem a lavoura arcaica e a agricultura de precisão. Seus porta-vozes, lobbistas e parlamentares não representam a parte moderna da agropecuária. Insistem em demonstrar pelas ideias, projetos e discursos que estão ainda nos clubes da lavoura do século XIX.
A proposta de arrendamento de terra indígena é péssima. As TIs são unidades de conservação, como os parques nacionais e as florestas nacionais. Quem se dispuser a acompanhar as imagens de satélites verá que os índios prestam um serviço ambiental ao país porque as suas áreas têm se mantido preservadas. Um ou outro caso que fuja dessa regra não confirma coisa alguma, porque em sua maioria as áreas ocupadas por indígenas, e demarcadas, estão entre as mais preservadas.
Se isso for oficializado haverá um ataque do agronegócio a essas terras. Os indígenas, que são hoje ameaçados por grileiros, passarão a ser assediados por compradores, ou arrendatários, de terras com um risco enorme para a preservação da sua cultura e identidade. Imagine-se por exemplo a terra dos Awá Guajá. Quando estive lá, em 2013, pude ver a pressão dos grileiros e produtores em torno da terra, uma das poucas áreas remanescentes de floresta amazônica no Maranhão. Foi quando escrevi a reportagem “Paraíso sitiado”. Eles foram contactados a partir de 1979, a maioria nem fala português e o povo está totalmente despreparado para negociar arrendamentos. Eles são poucos e estão extremamente ameaçados de extinção. A proteção de suas áreas têm permitido o crescimento populacional. Só na aldeia Juriti nasceram este ano seis crianças. Para um povo de 400 pessoas, isso faz diferença. Fico tentando imaginar o líder Piraima’á ou o jovem Juí’í enfrentando a volta dos grileiros, que foram tirados de suas terras, agora com dinheiro na mão propondo um “arrendamento”. Será um atentado duplo: à identidade de um povo que fugiu do contato por quase 500 anos e à floresta que eles têm defendido. Ainda ouço o que eles me disseram quando estive lá: “eles estão matando as árvores, eles estão nos matando”.
O Brasil não precisa disso. O agronegócio pode ampliar-se por terras hoje disponíveis e que já foram usadas na agricultura ou pecuária e podem ser recuperadas para seu uso produtivo. O cálculo dos especialistas é que há 60 milhões de hectares disponíveis. A pecuária extensiva é improdutiva e deveria adotar novas formas de produção. Alguns já estão fazendo isso na Amazônia. É preciso usar melhor a terra disponível.
Os ruralistas têm aproveitado momentos que eles acham oportuno para apresentar suas propostas indefensáveis. Quando foi aprovada a reforma trabalhista, a bancada apresentou um projeto de mudança das leis rurais que permitiria o desconto do salário dos trabalhadores da moradia e alimentação. Era tão absurdo, em vários detalhes, que o próprio autor do projeto, o deputado Nilson Leitão, o recolheu. Agora aparece essa nova ideia exatamente quando o presidente Temer está com seu balcão de negócios aberto no Planalto. Tentam ver se emplacam. Por enquanto, o governo nega. Até quando?
É espantoso e cansativo que o setor do agronegócio, tão importante para o Brasil, não tenha aprendido o básico sobre o tempo que estamos vivendo. Nele, a produção de alimentos tem que ser feita com alta tecnologia, respeito às leis trabalhistas, compromisso com o meio ambiente, cumprimento das normas sanitárias, rastreabilidade. O que se flagrou no escândalo da carne fraca é que a prática de comprar fiscais era adotada até em grandes frigoríficos. Quando o século XXI chegará ao campo brasileiro?