Foi uma semana marcante. O ministro Celso de Mello encerrou seu tempo no Supremo Tribunal Federal (STF) deixando a sensação de que 31 anos podem ser poucos, que sai quando é ainda necessário ao país. O STF foi tragado por uma voragem conflituosa envolvendo o novo decano, Marco Aurélio Mello, e o presidente Luiz Fux. Os dois Mellos não têm qualquer parentesco em nenhum sentido da palavra, mas os eventos ajudam a refletir sobre o Supremo e o país.
Não poderiam ser mais distantes os estilos dos dois decanos, o que sai e o que entra. Celso de Mello era construtor de maiorias, era a pessoa para a qual os pares olhavam, Marco Aurélio é um lobo solitário e passa a impressão de que o debate no colegiado importa menos do que marcar sua singularidade. Sempre preferiu votos indiossincráticos, amparados em teorias por vezes incompreensíveis aos mortais. Com grande frequência terminava sozinho, como nesta semana com o placar de nove a um. Recebeu o conforto das reprimendas dos colegas ao ato de Fux de cassar sua liminar, mas o desagrado de ver que ninguém daria liberdade ao traficante André do Rap.
Marco Aurélio Mello concedeu um habeas corpus tão controverso que não seguiu nem a si mesmo. Apesar de ter brigado a semana inteira de inauguração do seu decanato em defesa de sua decisão, o ministro não concedeu o mesmo benefício a outro preso, companheiro de facção e criminalidade de André do Rap. No conflito com o presidente do Supremo, não quis conciliação. Nada o aplacou nem mesmo o fato de os colegas concordarem que Fux não tem o poder de cassar liminares dos outros ministros. Acusou Fux de “autoritarismo”, fez uma estranha pergunta para o ambiente: “vai querer me peitar?” Quando o presidente do STF disse que o traficante enganara até a ele, Marco Aurélio, por não ter cumprido a ordem de recolher-se em seu domicílio, o decano disse que não fora enganado, já que reconhecia o direito de André do Rap “fugir de uma prisão ilegal”.
A discussão subjacente em todo esse conflito é se teremos ministros do Supremo que olham a literalidade da lei e a aplique automaticamente como se não houvessem circunstâncias agravantes e atenuantes. A dúvida é se o artigo 316 do Código Penal, que exige a renovação da prisão preventiva, determina a liberdade automática ou se caminharão para um acórdão que proteja a sociedade da libertação de criminosos condenados como André do Rap e leve à libertação de quem está de fato preso de forma abusiva.
Celso de Mello no seu último ato votou contra a concessão de um privilégio ao presidente da República. O risco é de que não seja seguido, apesar de serem cristalinas as suas razões. Está lá o artigo 221 do Código de Processo Penal, no capítulo que trata “Das Testemunhas”. Se derrubar a decisão de Celso de Mello concedendo a Bolsonaro o direito indevido de depor por escrito, o plenário do STF estará consagrando um erro cometido na avaliação da investigação de Michel Temer. Naquele caso, a decisão foi monocrática. Se for agora confirmado no pleno, fica eternizado. Assim, todos os presidentes, Bolsonaro e os que vierem depois, terão o conforto de entregarem seus interrogatórios para os advogados preencherem. Estarão livres do constrangimento de responderem pelos seus atos duvidosos. O indicado para substituir Celso de Mello, Kássio Nunes, está entrando pela porta lateral, em conchavos explícitos, dúvidas curriculares e lealdades outras que não as que um ministro deve obedecer. Que a cadeira que poderá vir a ocupar até 2047 o ajude a corrigir a rota.
O grande legado de Celso de Mello é a defesa da Constituição. Ele foi uma feliz indicação do ex-presidente Sarney, bem no alvorecer da nova ordem constitucional. Mostrou nas décadas seguintes ser a pessoa certa no lugar certo. Sua intransigência na defesa de princípios da liberdade, do respeito às minorias e de um governo de iguais o tornaram fundamental numa República que acabara de viver um longo período autoritário. Ele sai quando de novo o país é ameaçado por um governante que nunca valorizou o patrimônio cívico da democracia. Celso de Mello balizou o caminho a seguir. Seus votos permanecerão iluminando o plenário que deixou, os outros tribunais do país e as nossas consciências.