Na eleição em que tanto havia para se discutir sobre o país, o debate da campanha virou o perigo do “comunismo”, uma volta aos anos 1970
Todas as eleições são difíceis. Nem todas são infelizes. Ao fim, o verdadeiro vencedor não é necessariamente o que tem mais votos, mas o que, vencendo, consegue pacificar o país. Até agora não há sinal de que teremos isso. Não é o resultado que infelicita um processo eleitoral, mas sim o que acontece no meio do caminho. E houve muitas irregularidades que as autoridades não conseguiram coibir, e muitas fraturas que prenunciam um tumultuado depois.
O país havia se preparado para que essa eleição fosse uma oportunidade de mudança. Especialistas em várias áreas, dos tributos à educação, da indústria ao combate à corrupção, formularam projetos para apresentar aos candidatos. O Banco Mundial fez um estudo profundo das despesas públicas brasileiras e apresentou, também como oferta a todos, as ideias por um “ajuste justo”. Houve até uma convergência. Vários programas de candidatos falaram em rever os subsídios e gastos tributários com setores empresariais. Mas não explicaram o que ou como fazer. Em alguns casos era apenas rótulo.
Mesmo que o próximo governo desperdice o esforço do país, as instituições seguirão com seu ativismo. A propósito: ativismo nunca foi uma palavra feia. Significa a mobilização de alguém por alguma causa coletiva na qual acredita.
O que torna essa eleição infeliz é a total falta de foco nos nossos reais problemas. As divisões e brigas entre os candidatos não se deram em torno do que nos aflige, mas por uma agenda artificial, fora do tempo e lugar.
O Brasil voltou aos anos 1970, em plena Guerra Fria, pelo esforço de Jair Bolsonaro de recriar a era do seu saudosismo. A propaganda no horário eleitoral fala de um suposto perigo do comunismo. Os mais velhos reconheceram o tom do marketing daquela época. O comunismo acabou no mundo por falta de quorum. Nem a China é mais. É bizarro que no Brasil tenha se recriado a divisão de mundo cujo último símbolo desabou com o muro de Berlim em 1989. O Brasil está cheio de inimigos reais — como o atraso na educação, a violência, a logística deplorável, a falta de saneamento, a emergência na saúde, o alto desemprego e a corrupção — e inventou que o importante é fazer uma extemporânea caça aos “comunistas”. Convenhamos.
As Forças Armadas recuaram décadas em seu esforço de serem instituições apartidárias. Nos últimos 30 anos elas serviram a todos os presidentes. É verdade que nunca aceitaram rever criticamente seu papel na ditadura militar, mas estavam comprometidas com o seu novo papel distante da briga política. O erro não é militares de pijama trabalharem nas campanhas e virarem candidatos a ministros. Se estão aposentados podem fazer o que quiserem de suas vidas. O problema foi a ambiguidade dos comandantes da ativa, especialmente do Exército. Diante de um silêncio aquiescente dos militares, Jair Bolsonaro sustentou ser o candidato das Forças Armadas, o que é uma aberração na democracia.
A Justiça Eleitoral falhou porque tardou a combater a mentira e a manipulação. Não é fácil fazer essa vigilância na era da mídia social. É um desafio para todos. Mas o TSE estava alertado que teria que enfrentar os que agem nas sombras, os que se escondem atrás de robôs, os que fingem ter um exército de voluntários, mas podem estar tendo o apoio ilegal de empresas. Demorou demais a agir. Só dias atrás negou a existência do chamado “kit gay”, mentira usada desde o começo pela campanha de Bolsonaro. Além disso o TSE fechou os olhos para várias assimetrias na exposição dos candidatos.
O ataque a Jair Bolsonaro em Juiz de Fora mostrou de forma aguda o pior lado dessa eleição em que se falou mais do ódio ao outro, do que do sonho para o país. Essa eleição é infeliz não pelo resultado que terá, seja ele qual for, mas pelo que houve no meio do caminho. Inúmeras pessoas se sentiram liberadas a assumir o preconceito ao outro, ao diferente de si, em plena era da superação de barreiras e da aceitação da diversidade.
Quem for eleito só governará bem se respeitar os limites institucionais e aceitar as críticas normais numa sociedade aberta. Dentro de uma semana o eleitor escolherá o governo, mas também a oposição. Quem perde uma eleição recebe do eleitor um papel: o de ser oposição. A democracia precisa que ambos saibam cumprir o seu papel.