Dentro do STF, a interpretação é que a constrangedora reunião imposta pelo presidente ontem foi uma forma de jogar para a Justiça a culpa pela crise
Seria só insólita se não fosse uma absurda pressão de um poder sobre o outro. A marcha para o Supremo foi uma total quebra de protocolo da relação entre os poderes. E tudo aconteceu num rompante. O presidente decidiu no meio da conversa com empresários, o advogado-geral da União, José Levi, ligou para o presidente do STF dizendo que o presidente queria ir para lá com empresários e alguns ministros. E saíram andando pela Praça dos Três Poderes. Os ministros do Supremo entenderam o gesto como uma tentativa do presidente de responsabilizar a Justiça pela crise.
Alguns ministros que acompanharam Bolsonaro admitiram depois que ficaram constrangidos com a cena da qual tiveram que participar. No Supremo, outros ministros discordaram da reunião. O próprio Dias Toffoli não tinha como recusar. A grande questão é o que Bolsonaro queria com o gesto?
– Há várias leituras possíveis. Pode-se entender que ele quis dizer para os empresários que é o Supremo, a Justiça, que não está deixando a retomada da economia em razão de suas decisões. Na verdade, eu acho que é insegurança. O governo não sabe o que fazer e quer passar a batata para o outro lado da praça. Mas sem protocolo, sem coordenação, sem planejamento e sem segurança sanitária coordenada nacionalmente, não é um juiz que vai decidir isso – resume um dos ministros do STF.
O evento causou irritação, porque lembrava uma tentativa de intimidação. E o presidente levou até o filho investigado que já foi beneficiado, ainda que temporariamente, por uma decisão do próprio ministro Dias Toffoli, quando suspendeu os inquéritos com base no Coaf, pedido pela defesa de Flávio.
O que foi falado lá tinha várias incorreções.
– Estão aqui grandes empresários que representam mais de 40% do PIB – disse Bolsonaro.
Errado. A indústria de transformação é 11% do PIB, e eles, da coalizão indústria, dizem que são 40% da indústria. Isso significa 4,5% do PIB. Não é pouco, são setores importantes para a economia, mas a ordem de grandeza é bem diferente da que o presidente falou.
– Economia também é vida – disse o presidente Bolsonaro.
Lá fora, ele repetiu essa ideia:
– Dizem que a economia deixa pra lá, que o importante é a vida. Não é assim não.
O líder do grupo, Marco Polo de Mello Lopes, que representa a siderurgia, disse que a indústria enfrenta duas crises, a da Covid e a da queda da demanda “fruto, evidentemente, das decisões de fechamento por parte dos estados”. Ou seja, tudo o que Bolsonaro gosta de ouvir, a culpa é dos governadores. O presidente da Abrinq, Synésio Batista da Costa, disse que há risco “de morte do CNPJ” e argumentou que “o mundo inteiro está operacional, até a China”. Ora, as retomadas que deram certo esperaram a redução das mortes e das infecções.
Em todo o desarrazoado evento houve várias frases infelizes que pareciam valorizar mais a economia que a vida humana. Evidentemente que a economia é importante, mas a normalidade não pode ser baixada por liminar. O lobby industrial não pode desembarcar em Brasília, juntar-se ao presidente, ao ministro da Economia, a ministros militares e marchar sobre o Supremo para dizer que vai ter um colapso se as atividades não forem liberadas agora. O país está tendo uma média de 600 mortes por dia e já passamos de nove mil mortos, além da nossa vasta subnotificação. Lamentaram a morte do CNPJ, falaram de indústria na UTI, usaram figuras de linguagem de mau gosto. E num gesto inútil, porque o que precisa acontecer para que a economia possa voltar o mais rapidamente possível é o governo governar. Foi isso mais ou menos que o ministro Dias Toffoli disse.
Ter que fazer todo esse carnaval para ouvir de um ministro do Supremo que o governo precisa falar com os governadores e os prefeitos, precisa criar um comitê de crise é vexatório. Isso é o básico, já deveria ter acontecido, a coordenação entre os entes federados e a União no meio de uma pandemia em que cemitérios e hospitais entram em colapso é o mínimo que se esperava desde o primeiro momento.
O ministro Paulo Guedes, com suas contas improváveis, disse coisas como “os Estados Unidos desempregaram 25 milhões de pessoas em cinco semanas e nós preservamos 5,5 milhões de empregos”. E mais uma vez prometeu que “o Brasil vai surpreender o mundo”. Mais do que já está surpreendendo.