Míriam Leitão: Aflição e orgulho

Um lado do país dá aflição; o outro, orgulho. Vivo a sensação de estar em um país partido, divorciado de si mesmo. Um lado apodrece e tem poder, o outro resiste com força espantosa. Os políticos afrontam diariamente os valores com suas decisões e falas. Mas eu visito escolas públicas que dão certo em locais improváveis, um hospital modelo em pleno desastre do Rio, funcionários públicos que defendem o patrimônio ambiental do país. Tudo é real.
Foto: Ana Carolina Cortez
Foto: Ana Carolina Cortez

Um lado do país dá aflição; o outro, orgulho. Vivo a sensação de estar em um país partido, divorciado de si mesmo. Um lado apodrece e tem poder, o outro resiste com força espantosa. Os políticos afrontam diariamente os valores com suas decisões e falas. Mas eu visito escolas públicas que dão certo em locais improváveis, um hospital modelo em pleno desastre do Rio, funcionários públicos que defendem o patrimônio ambiental do país. Tudo é real.

É realidade um governo que conspira em medidas e decretos contra o meio ambiente. É realidade que dois funcionários do ICMbio, Enrique e Dolvane, navegam pelas curvas do Rio Negro em Anavilhanas com paixão e denodo. Confiam que vão ser efetivos em suas ações nos mais de 350 mil hectares do arquipélago fluvial da floresta alagada.

É verdade que recursos públicos são desviados ou mal geridos. E é real a Escola Maria Leite de Araújo, na zona rural de Brejo Santo. O prêmio recebido do governo do Ceará por ser escola Nota Dez foi investido em melhorias decididas depois de reunião com os pais. Uma das mães que entrevistei disse que a escola é como se fosse sua família. Nas horas que passei lá, vi uma cena inusitada: uma criança pulou o muro, mas para dentro da escola. Ele é do turno da manhã, não havia ainda começado o turno da tarde e o portão está fechado. Como mora perto, costuma pular para dentro. Gosta.

O Rio vive a sua mais grave crise em todas as áreas, o ex-governador Sérgio Cabral, preso, o ex-secretário de Saúde Sérgio Côrtes admite que recebeu vantagens indevidas. E foi no Rio que eu passei horas encorajadoras dentro do Instituto Estadual do Cérebro. Andei pelas UTIs que, por respeito aos pacientes, filmamos discretamente, mas pude ver de que classe social eram. Ali estava quem precisa do SUS. Tecnologia de ponta, médicos de excelência e a mesma paixão em todos os funcionários. Fui ao banheiro me vestir para entrar na sala de cirurgia e encontrei uma funcionária que me disse: “tenho orgulho de trabalhar aqui.” Não havia câmara ali, não era entrevista. Ela apenas quis dizer. A mesma paixão que se vê no diretor médico Paulo Niemeyer Filho.

Viajei com um time de profissionais de TV por 42 mil quilômetros, entre maio e outubro, pelo profundo do Brasil. Nessa busca do real da vida do país eu via o poder com ainda mais distanciamento. Era necessário ter um pé em cada realidade, porque o trabalho de acompanhar a conjuntura é incessante, e essa visão dupla mostrava mais profundamente a fratura. Em Brasília, conspira-se contra a apuração e a punição da corrupção que foi flagrada e exposta. No país, muita gente resiste à mais grave crise já vivida em tempos democráticos fazendo o melhor que consegue: produzindo, ensinando, estudando, curando, pesquisando, fiscalizando, plantando.

— Não teria graça só uma escola se destacar e as outras não — diz Gracinha, a diretora da Escola Maria Leite, sobre o compromisso de dar assistência pedagógica a escolas que não tiveram o mesmo desempenho da sua. Ela quer o sucesso compartilhado.

Ao começar a gravar a série História do Futuro, que está indo ao ar na Globonews, as decisões foram: não entrevistar autoridades, ficar longe do poder, não fugir dos problemas mas ir atrás das soluções que estão sendo tentadas. Ver o presente do futuro, os sinais atuais do que pode ser o futuro. O sucesso ensina, fomos visitá-lo.

O sucesso nunca é resultado da ação de uma pessoa só e não tem explicação única. O Ginásio Pernambucano tem algumas das estratégias para enfrentar o abandono e a evasão, problemas que ameaçam tanto os estudantes de ensino médio. Começa o ano letivo e os novos alunos são recebidos na sessão de acolhimento por ex-alunos da escola. Depois, entre as disciplinas, há o Projeto de Vida, na qual os estudantes vão aprender a sonhar e a traçar a estratégia para alcançar os sonhos. Há um esforço deliberado dos professores de infundir autoconfiança nos alunos. E são sete as horas de estudo. Aprendi muito numa roda de conversa com adolescentes. Tudo parece rápido na TV, mas passei horas, às vezes um dia inteiro, em cada realidade que mostro.

Viver os dois lados da realidade brasileira é estar o tempo todo entre a aflição e o orgulho. Tem sido esse o meu cotidiano.

Fonte: http://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/aflicao-e-orgulho.html

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