Nossa esperança de novo se equilibra. Perdemos quem cantou para o país que dores pungentes não podem ser inutilmente. Com seu talento, Aldir Blanc fez do sofrimento de um tempo extremo músicas que nos ajudaram a seguir por um trilho estreito. É impensável tudo isso que anda acontecendo, mas a verdade é que tantos anos depois, de novo, a tarde parece cair como um viaduto. A doença que o atingiu já levou mais de sete mil brasileiros, e o Brasil dança na corda bamba. Várias cordas, todas bambas. A da luta diária pela vida, a de um país atormentado, a de velhas sombras que o próprio governante joga sobre nós.
As más intenções estão sendo ditas pelo presidente Jair Bolsonaro, por atos e palavras. Todos os dias. Ele se reuniu com os militares no domingo. Ouvi um general do alto escalão do governo, e ele me disse que existe uma “extrapolação de funções por parte do Judiciário”, e que isso vem desde 2014. Citou dois exemplos, a escolha de auxiliares e a política externa. Seriam prerrogativas do chefe do Executivo que foram invadidas. Portanto, o que senti nessa autoridade foi apoio ao presidente em dois fatos específicos: a suspensão da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal e o problema dos diplomatas venezuelanos. Bom, uma coisa é a fricção que possa existir entre os poderes. Normal. Outra é fazer o que Bolsonaro fez.
Bolsonaro usou as Forças Armadas para ameaçar quem pensa diferente daqueles que, ao seu lado, na manifestação de domingo, pediam a volta da ditadura. O protesto contra a democracia poderia ser um evento menor, ainda que sujeito à punição legal, mas o ato se agiganta quando o presidente comparece e afirma: “As Forças Armadas estão do nosso lado.” E quem não está daquele lado deve pensar o quê?
O Brasil tem vivido entre cantos e chibatas há tempo demais. Há muitas pedras pisadas nesse nosso cais. Não é possível, à luz da história, reduzir a gravidade do que tem acontecido diante de nós, na frente de prédios que simbolizam o poder no Brasil. Quem viveu não pode dizer que não vê. Os olhos dos fotógrafos veem melhor. São agudos, têm foco, não se perdem na multidão. E por isso sobre eles veio a agressão de domingo no ato em que o presidente se divertia espalhando ultimatos para os poderes.
Da autoridade com quem eu tentei entender como o ato de Bolsonaro era visto, eu só ouvi crítica aos manifestantes. Alguns teriam “ideias radicais e que não param em pé”. A fonte garantiu que “ninguém vai embarcar numa aventura”. É o mesmo que ouvi de outras fontes há duas semanas, quando o presidente também participou de uma manifestação contra a democracia. Essa primeira é objeto de um inquérito. Portanto, Bolsonaro participou de um evento semelhante a outro que está sob investigação. Ele dobrou a aposta.
As Forças Armadas no começo da tarde soltaram a segunda nota em apenas 15 dias. Disseram que são democráticas, repudiam as agressões aos jornalistas e que “estão do lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. Bolsonaro também listou esses quatro, “lei, ordem, democracia, liberdade”. E acrescentou: “estão do nosso lado.” O Ministério da Defesa não refutou essa insinuação de estar a favor de manifestantes que querem fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Fica mais um silêncio pesando sobre o país.
A tibieza das instituições, a desenvoltura com que o presidente fere as leis, a agressividade que ele autoriza que seus apoiadores pratiquem, ao lançar, ele mesmo, ofensas verbais contra pessoas ou instituições, o assalto aos órgãos de Estado. Tudo vai se misturando, tudo lembra o passado. “Batidas na porta da frente. É o tempo.”
Quando Aldir Blanc e João Bosco lançaram a música que virou hino, “O bêbado e a equilibrista”, a gente vivia sentimentos mistos. O país carregava muitos anos de dor, mas o irmão do Henfil estava voltando e “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Então era cantar bem forte, junto com Elis, o fim daquele exílio. E agora? Qual é a melhor resposta ao tempo que bate na porta? Que ele passe. Porque tudo isso foi há muito tempo nas águas da Guanabara. E para o poeta que nos deixou, vítima da pandemia, a gente pode cantar sua música que fica como um legado, um carinho, no meio de tantas lutas inglórias.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)