É preciso abrir frentes de interlocução com a sociedade, para não ser um presidente solitário
Na primeira eleição direta depois da ditadura, em 1989, os candidatos dos principais partidos – Ulysses Guimarães, Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas – naufragaram. O povo queria o novo. Foram para o segundo turno Collor e Lula. Collor, candidato pelo pequeno PRN, apresentou-se como o caçador de marajás, em luta contra a corrupção do governo Sarney. O populismo prevaleceu sobre a força dos partidos políticos.
De similar com aquela eleição, na deste ano busca-se o novo e há ilusão de que as dificuldades serão superadas pela figura mítica do ungido, sem nenhuma avaliação racional, como crença a pairar longe de qualquer motivo objetivo.
O sentimento antissistema e anti-PT, ao simbolizar esse partido o aparelhamento do Estado, foi um dos fatores determinantes do processo eleitoral deste ano, principalmente nos municípios mais populosos e de maior índice de desenvolvimento humano (IDHs). Entre os mil municípios com maior IDH, Bolsonaro ganhou em 967; nos mil de menor índice, Haddad venceu em 975.
A população que se sentia mais independente da tutela estatal tendeu a votar em favor do novo, ou seja, contra o sistema. Isso repercutiu na eleição de governadores novéis na política, concorrendo por partidos sem expressão. Destaque-se o inexperiente Romeu Zema, na tradicional Minas Gerais, candidato pelo Novo, vencendo o ex-governador Anastasia. Novatos, sem vivência na administração pública, surpreenderam em Estados importantes como Rio de Janeiro e Santa Catarina e no Distrito Federal, bem como em Roraima e Rondônia. Ao lado disso, velhas raposas foram derrotadas: Romero Jucá, Eunício Oliveira, Roberto Requião.
Mas esses resultados não decorreram apenas dos sentimentos de rejeição ao velho e de desejo do novo. Há outro fator essencial para esse processo ter ocorrido e a ser pensado em seus surpreendentes efeitos.
Já se sentira a força das redes sociais no processo político por via das quais se destituíram governos ditatoriais no norte da África. Se no Egito se depusera Mubarak, os movimentos democráticos não conseguiram organizar um governo. A final, fundamentalistas e militares entraram em cena.
No Brasil, as redes sociais mobilizaram imensamente a população em favor do impeachment. Depois, virtualmente, reuniram-se milhões na noite de 29 de novembro de 2016, quando se urdia votar no Congresso o projeto de lei de anistia ao caixa 1 e 2. Em reação, viralizou na internet a hashtag #MaiaNovoCunha, que se tornou trending topic, conseguindo-se impedir a vitória da impunidade.
O presidente da Câmara, ao saber da repercussão nas redes sociais, suspendeu a sessão por falta de quórum. Temer, no domingo seguinte, convocou, com imprensa presente, Maia e Renan para declarar que não haveria projeto de anistia. Em artigo nesta página, escrevi: “Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representativa deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp”.
Agora, foi-se mais adiante: a força das redes sociais se fez presente, e contundentemente, numa eleição para presidente e governador. É uma nova democracia, sobre a qual restam ainda muitas perguntas.
Se já não tínhamos partidos políticos, substituídos por frentes parlamentares ou bancadas, com seus líderes processados por corrupção, agora, sim, surgiu um golpe fatal, com uma forma de democracia direta pela via virtual.
Os órgãos intermediários fundamentais numa democracia representativa não mais exercem algum papel. Bolsonaro ganhou a eleição sem partido, sem tempo de televisão, sem deputados, sem Fundo Partidário, sem governadores do seu partido, sem programa de governo discutido com a sociedade. Apenas pregou monossilabicamente alguns princípios conservadores. Por outro lado, sindicatos, órgãos de classe, entidades associativas, igrejas exercem menos influência do que os grupos de WhatsApp, acessados a cada instante.
Cada qual se sente potente ao opinar na rede social. Todos são iguais perante a internet: esse o novo direito fundamental. O excesso de mensagem contrasta com a escassez de reflexão, pois o que importa é ter opinião, sentir-se participante.
Como diz o cientista político da Universidade de Cambridge, David Runciman, em entrevista à revista Época, edição de 29/10, a crise de confiança na democracia atinge o pacote democrático composto por eleições, partidos políticos profissionais, sindicatos, programas de políticas nacionais e escolha entre direita e esquerda.
Na falha de corpos intermediários a mediar as reivindicações, cada qual não busca meios de ser representado, apresenta-se diretamente pelas redes sociais. Como sobreviverá a democracia sem partidos, cujos resultados brotam da árvore frondosa das redes sociais? Esse é o grande desafio.
No Brasil, a questão é ainda mais angustiante: a imensa participação nas redes sociais e a desmedida expectativa de resolução das dificuldades, quase que por um passe de mágica, apenas por nos livrarmos do PT, levam ao risco imenso de uma breve desilusão.
Bem ao contrário de solução imediata e fácil, as decisões políticas e técnicas, em vista de nossa realidade complexa e complicada, exigem massa crítica no exercício da reflexão, sabedoria e traquejo políticos, escolha bem pensada de prioridades, limites de campos de combate, virtudes por ora não reveladas no front do presidente eleito.
Ao estilo de pessoa do ex-capitão, ora presidente eleito, sugere-se que é preciso, como fazia o sábio dr. Ulysses, ter a paciência de ouvir e ouvir, para só bem mais tarde decidir. Além do respeito à liberdade, é preciso abrir frentes de interlocução consistentes com a sociedade, para deixar de ser um presidente solitário no alto das redes sociais.
*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça