Estamos vivendo tempos estranhos, vive repetindo o ministro Marco Aurélio, em tom crítico, quando alguma coisa acontece no plenário do Supremo com que ele não concorde. Os ministros que formam hoje a minoria no plenário fazem parte da maioria da Segunda Turma, que é vista como mais condescendente com os réus da Lava-Jato, e Marco Aurélio, que comunga com a visão dessa maioria, está deslocado na Primeira Turma, quase sempre saindo derrotado.
Foi na Segunda Turma, por exemplo, que a Lei da Ficha Limpa foi solenemente ignorada para permitir que o ex-senador Demóstenes Torres possa se candidatar ao Senado nas próximas eleições. Cassado por seu envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, o ex-senador estava inelegível automaticamente. No entanto, os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes deram-lhe o direito de concorrer sem que a cassação de seu mandato tenha sido anulada pelo Senado.
Só assim, em tempos menos estranhos, ele poderia se livrar da Lei da Ficha Limpa, que diz expressamente que políticos condenados em segunda instância ou cassados tornam-se inelegíveis. Se três ministros do Supremo se dão ao direito de ignorar uma lei em vigor, vivemos mesmo em tempos estranhos.
O ministro Lewandowski manteve o tom crítico em seu voto em reunião recente do Supremo ao defender o direito de Paulo Maluf aos embargos infringentes, mas acabou sendo derrotado. Insinuou que o país vive um momento de exceção, como se não estivéssemos numa democracia plena.
Disse o ministro: “Em momentos de crise, como este que estamos vivendo, é preciso encarar com uma generosidade ainda maior do que normalmente o fazemos a possibilidade de interposição de recursos e a impetração de habeas corpus. Todos sabemos que acabamos de sair de um impeachment e estamos testemunhando uma intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, uma das maiores unidades de nossa federação, e a intervenção federal é um instrumento constitucional que permite a substituição da legalidade ordinária por uma legalidade extraordinária assim como ocorre no estado de defesa e no estado de sítio. É por isso mesmo que a lei maior não permite a votação de emendas constitucionais quando estejam vigentes estes institutos. Estamos, portanto, vivendo sem dúvida nenhuma uma situação excepcional”.
Lewandowski propositalmente esqueceu de esclarecer que a intervenção federal foi na Segurança Pública, e não se compara ao estado de defesa ou ao estado de sítio, que suspendem as garantias individuais, o que não acontece no Rio de Janeiro. O mesmo Lewandowski se refere ao impeachment da então presidente Dilma, episódio em que teve papel preponderante como presidente do Supremo Tribunal Federal, supervisionando os trabalhos do Senado.
E foi com seu consentimento que se rasgou ali a Constituição com uma interpretação esdrúxula do artigo que trata do impeachment, inventando uma vírgula para permitir que a presidente sancionada não perdesse seus direitos políticos. Uma das mais vergonhosas decisões dos últimos tempos, com a chancela de Lewandowski, que agora dá tons épicos à defesa dos embargos infringentes com apenas um voto da Turma, na tentativa de abrir uma senda sem fim para que, recursos sobre recursos, os réus da Lava-Jato possam escapar das punições.
A interpretação canhestra da Lei da Ficha Limpa pode ser uma nova tentativa de não inviabilizar a candidatura do ex-presidente Lula à Presidência. A defesa do ex-presidente terá que entrar brevemente com um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para tentar anular sua inelegibilidade, o que dificilmente acontecerá. Pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem adotado a Lei da Ficha Limpa, ele provavelmente não passará. Mas sempre restará um recurso adicional ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ali veremos se a interpretação teratológica que deu ao senador Demóstenes Torres o direito de se candidatar mesmo estando cassado terá guarida na maioria do plenário.