Merval Pereira: O futebol como metáfora

A seleção de futebol da Rússia está prestes a se classificar para as oitavas de final da Copa do Mundo, o que só aconteceu em 1986, quando ainda existia a União Soviética. E já superou um tabu, pois nunca vencera duas vezes seguidas em uma Copa.
Foto: RFS/RU
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A seleção de futebol da Rússia está prestes a se classificar para as oitavas de final da Copa do Mundo, o que só aconteceu em 1986, quando ainda existia a União Soviética. E já superou um tabu, pois nunca vencera duas vezes seguidas em uma Copa. A festa pelas ruas de Moscou ou São Petersburgo é muito mais simbólica do que em qualquer outra edição da Copa do Mundo, pois os russos, além de estarem no centro das atenções de bilhões de pessoas pelo mundo, com a realização de uma Copa do Mundo até aqui impecável como organização, reafirmam com a atuação da antes desacreditada seleção de futebol a reconquista do orgulho nacional.

Há uma explicação histórica para tal, a alma russa se impõe nas comemorações. Para o historiador russo Dmitri Trenin, do Carnegie Moscow Center, que antes de se juntar a esse prestigioso think tank serviu por 21 anos no Exército soviético e nas forças terrestres de segurança da Rússia, aposentando-se como coronel, o povo russo sofreu muito ao longo do século XX: “Dificilmente outros povos terão sofrido tanto”, definiu ele em recente palestra no Centro Brasileiro de Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

O povo russo, na concepção do especialista, se percebe como “um grande país solitário”. Faz fronteira, de um lado, com a Noruega e de outro com a Coréia, inúmeras etnias e idiomas, é a maior área geográfica do planeta e se sente traído pela União Européia, que atraiu seus ex-satélites.

Trenim resume assim os anos de sofrimento: “Convulsões sociais na alvorada do século, Primeira Guerra, 70 anos de regime comunista, única grande experiência humana no marxismo que naufragou depois de muito sacrifício de seu povo, Stalin, Segunda Guerra com 28 milhões de mortos, mais Stalin, fim da URSS, perda de suas repúblicas”.

Para ele, a ambição original pós-comunismo era uma integração com União Européia, desde a reunificação da Alemanha em 1990. O único pleito russo, feito por Shevardnadze a Kohl, da Alemanha, foi não crescer a OTAN. Apesar do compromisso, com Bush o Tratado do Atlântico Norte (OTAN) cresceu muito. Os russos se sentiram isolados e traídos, ressalta Dmitri Trenin.

A primeira viagem de Putin depois de assumir o governo, em 1999, foi a Berlim, pois tem bom relacionamento com a primeira-ministra Angela Merkel, que fala russo tão bem quanto ele fala alemão, idioma que usou ao discursar no Reichtag. A integração, no entanto, frustrou-se. Europa meio que “roubou suas ex-colônias e abandonou” os russos, avalia Trenin.

A invasão da Criméia, que gerou sanções do Ocidente, é avalizada pelo povo, que na definição de Dmitri Trenin “está adorando” ter voltado ao comando russo; “ O povo russo gosta de um czar, Stalin foi, Putin é”, afirma Trenin. Depois de um século de sofrimento, nos últimos 18 anos, com Putin à frente do governo, “o povo russo respira, vive seu dia a dia com calma. Putin é idolatrado”.

A economia cresceu na media 1,5% desde 1999 com Putin. É pouco, poderia ser mais, mas “dá pro gasto”, embora o investidor internacional tenha dificuldades para investir, para compreender o ambiente de negócios russo, que tem um índice de corrupção ainda muito alto. Esses percalços, que ganham relevância no Ocidente, não parecem afetar os russos de maneira geral.

É comum, em conversas com cidadãos, ouvir respostas que nos soam mal. Como a afirmação de que a liberdade de expressão deveria ser menos importante do que o emprego ou a boa educação. Russos não estudam fora, há boas universidades no país. Questões de gênero também não são temas de preocupação da classe média, que prefere discutir o custo de vida, o sistema de saúde.

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