O julgamento de hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) gira em torno de dois ministros que, pela polarização do plenário, tornaram-se formadores de maiorias ou, como na definição usada nos Estados Unidos, “a maioria de um”.
O ministro Gilmar Mendes é o único dos ministros que mudou de posição desde a votação de 2016, dando a maioria virtual hoje aos que eram contrários à permissão para prisão após condenação em segunda instância.
O falecido ministro Teori Zavascki, que votou a favor da prisão em segunda instância, foi substituído por Alexandre de Moraes, que tem a mesma posição e não alterou a maioria. Já a ministra Rosa Weber, que votou a favor da prisão somente após o trânsito em julgado, tem dado um exemplo de comportamento num colegiado, acatando a maioria que ficou estabelecida naquela votação de 2016.
Dos 28 habeas corpus de condenados em segunda instância que teve de julgar desde então, Rosa recusou 27, mesmo contra sua opinião pessoal. O constitucionalista Gustavo Binenbojm, pela circunstância de fazerem parte de uma Corte radicalmente polarizada, vê uma proximidade entre as experiências da justice Sandra Day O’Connor, a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, e as de Rosa, a terceira mulher em nossa História a integrar o STF.
Como hoje no plenário do STF, por razões distintas, a divisão da Suprema Corte entre juízes republicanos e democratas conduzia as votações a virtuais empates em quatro a quatro, colocando a justice Sandra O’ Connor na posição de decidir sozinha grandes questões nacionais, mesmo quando isso significava votar contra a posição dos republicanos. Nomeada por Ronald Reagan, foi criticada por ser contrária ao aborto e acabou acusada de ser a favor, tal a independência intelectual com que agia. Para Gustavo Binenbojm, certo desapego pragmático a qualquer rigidez dogmática na aplicação do Direito transformou O’Connor em swing vote, ou seja, no voto decisivo em inúmeras votações importantes.
Não há no Brasil, como se pode atestar nas principais votações, pelo menos a partir do mensalão, a identificação político-partidária da maioria dos ministros do STF nos mesmos moldes norte-americanos, o que depõe a favor da nossa Corte. Basta ver que na votação de hoje do habeas corpus para o ex-presidente Lula, pelo menos metade dos votos que se supõe sejam dados contra ele virá de ministros nomeados na era petista. E o próprio Gilmar Mendes se valeu de sua posição favorável a Lula para dizer que não pode ser acusado de ser petista.
O constitucionalista Binenbojm define nosso cenário como mais complexo e nuançado, além de marcado por um sério problema de instabilidade jurisprudencial e insegurança jurídica. Essa polarização, analisa ele, coloca Rosa Weber na posição de swing vote: embora tenha votado no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) pela impossibilidade de execução provisória da pena na condenação em segunda instância, tem denegado quase todos os habeas corpus a pacientes nessa situação, “curvando-se, respeitosamente, ao entendimento da maioria de 6 a 5 formada no julgamento preliminar das ADCs”.
À semelhança da atuação de Sandra O’Connor, a Rosa não parece exercer a judicatura vinculada por laços de lealdade aos interesses do grupo político que a nomeou para o STF, ressalta Binenbojm. Ele considera que o fato de ser uma juíza do Trabalho de carreira a deixa à vontade para fazer escolhas doutrinárias sobre questões constitucionais sem o peso de uma vida dedicada matéria.
Por saberem dessa independência é que ministros que querem mudar a jurisprudência tentarão hoje fazer com que o julgamento do habeas corpus de Lula seja considerado “de repercussão geral”, transformando-se em um caso abstrato em que o mérito estará em julgamento, e não o caso concreto de Lula.
Rosa Weber se sentiria à vontade, nesse caso, para reafirmar sua posição contra a prisão em segunda instância. No caso concreto, ela seria incoerente pela primeira vez diante de um habeas corpus, desistindo de seguir a maioria que ainda prevalece no plenário do Supremo.
A manobra dos que querem mudar a jurisprudência aproveitando-se do caso de Lula é difícil de realizar, pois seria preciso que os dois relatores, Edson Facchin e Marco Aurélio, entrassem em um acordo nesse sentido. Mas uma contramanobra pode surgir, assim como foi uma surpresa a ministra Cármen Lúcia ter colocado o habeas corpus de Lula em julgamento, para evitar que Marco Aurélio pedisse que as ADCs fossem julgadas antes.
A presidente do STF pode antecipar-se e marcar o julgamento das ADCs para mais adiante. Dessa maneira, o plenário terá que enfrentar o caso de Lula sem subterfúgios. E Rosa terá a oportunidade de manter sua coerência. Seja como for, o julgamento do HC impõe a Rosa a responsabilidade de decidir. Na visão de Binenbojm, “a democracia brasileira depende da maioria de um”.