Merval Pereira: Aperitivo polêmico

Bolsonaro mostrou que pretende interferir em questões penais que já estão pacificadas pela legislação.
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Bolsonaro mostrou que pretende interferir em questões penais que já estão pacificadas pela legislação

Antes de colocar a outra mão na faixa presidencial, Bolsonaro anda metendo as duas mãos em cumbuca. No mesmo dia, levantou duas polêmicas com a Procuradoria-Geral da República em temas delicados: a escolha do substituto de Raquel Dodge e a proposta sobre o conceito de legítima defesa, para policiais e civis.

Ao afirmar que providenciaria imediata mudança no Código de Processo Penal para aplicar automaticamente a legítima defesa em favor dos policiais nos embates em que morram supostos bandidos, ou até mesmo “terceiros”, mostrou que pretende interferir em questões penais que já estão pacificadas pela legislação.

A figura do “excludente de ilicitude”, que compreende a “legítima defesa”, já existe, mas tem que haver um processo, a avaliação de um juiz. Um delegado até pode decidir, mas tem que ter um registro de ocorrência, a polícia tem que investigar.

O Ministério Público é que acusa, ou não. Os autos de resistência, mortes em decorrência de atividade policial, são encaminhados ao Ministério Público. É improvável que o Supremo Tribunal Federal (STF) aceite uma mudança através de projeto de lei, até mesmo por emenda constitucional. Pela Constituição, o Ministério Público é o titular da opinião sobre o cometimento de crime, tem a competência privativa para promover a ação penal. Mudar isso seria, na interpretação corrente, alterar uma cláusula pétrea constitucional, com um poder interferindo em outro.

O projeto do deputado Jair Bolsonaro quer também retirar do artigo 25 do Código Penal, que define a legítima defesa, a parte que diz “(…) usando moderadamente dos meios necessários”. Questão similar foi discutida devido às missões de paz do Brasil no Haiti. Um dos principais assessores de Bolsonaro, já anunciado como futuro ministro da Defesa em um seu provável governo, o general Augusto Heleno chefiou uma dessas missões.

Ele me disse tempos atrás que, sob a égide da ONU, todas as definições eram feitas explicitamente, de modo que os soldados já chegavam conhecendo todas as normas, cada um sabia o que podia fazer. Nas regras do ato de engajamento da Missão de Paz da ONU, há referências expressas aos cuidados com danos colaterais, e a ação tem que ter proporcionalidade de forças. Ao contrário, no Brasil, nas missões de Garantia da Lei e da Ordem para que as Forças Armadas são cada vez mais convocadas, o poder de polícia do Exército é muito limitado, lamentou-se.

Houve muitas pressões políticas para dar mais garantias aos militares, e o temor de que os soldados pudessem ser expostos à condenação por causa de uma operação foi em boa parte superado pela lei sancionada pelo presidente Michel Temer, que transfere para a Justiça Militar o julgamento de militares que cometerem crimes contra civis nessas missões.

Também caberá à Justiça Militar julgar os crimes praticados durante o cumprimento de atribuições estabelecidas pelo governo, ou quando envolver a segurança de instituição ou missão militar, mesmo que não beligerante.

Outro ponto polêmico levantado por Bolsonaro é a escolha do novo procurador-geral da República (PGR). Primeiro, disse que não poderia ter “viés esquerdista”. Confrontado com o fato de que a escolha estaria sendo através de critérios ideológicos, e não técnicos, disse que se expressara mal, e que queria alguém de “centro”, que pensasse no Brasil.

Garantiu, pelo menos, que não será um procurador militar. E nem “subordinado” a ele, ou engavetador-geral. Mas avançou num ponto delicado, disse que não vai escolher da lista tríplice, de onde sai tradicionalmente o nomeado, depois de votação pelos membros da Associação dos Procuradores.

Não há nenhuma obrigação legal de escolher pela lista da corporação, e essa medida pode ser o início da quebra com decisões corporativas. Mas já causou um primeiro embate com os procuradores do Ministério Público. A atual procuradora-geral, Raquel Dodge — que, aliás, era a segunda da lista, não o primeiro nome que sempre foi o escolhido nos governos petistas —vai ficar até setembro no cargo.

A PGR já está anunciando que será contra a legítima defesa compulsória. Teremos tempo de ver como Bolsonaro, caso seja eleito, se comportará com uma Procuradoria-Geral da República independente.

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