O ex-presidente Tancredo Neves afirmava que voto secreto “dá uma vontade danada de trair”. Nada mais certo quando vemos as traições sendo negociadas à luz do dia, em troca de emendas e cargos. Traições dignas do nome, e traições travestidas de ação política, como os partidos de esquerda que cogitam lançar candidaturas próprias quando sabem que, com isso, estarão selando a vitória do candidato do Palácio do Planalto.
Por isso, quem vai decidir a sucessão na Câmara dos Deputados é a traição, que ocorre sempre nas votações secretas, e não apenas nas eleições congressuais. Na Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, há uma taxa histórica de “traição”, o candidato vencedor tem que contar com cinco votos a mais, pelo menos, do que o mínimo necessário.
No caso da Câmara, é tradicional essa taxa de “traição”, mas desta vez ele está sendo negociada abertamente. O PT começou conversando com o candidato do Planalto, deputado Artur Lira, alegando a necessidade de ter um espaço institucional na Mesa Diretora. Lira nega, mas há quem confirme que nessas conversas, até mesmo mudanças na Lei da Ficha Limpa foram abordadas, para favorecer o ex-presidente Lula.
Como a posição ficou esquisita, o PT voltou a se reunir com o grupo do presidente da Câmara Rodrigo Maia, e reivindicou a primeira-vice presidência da Mesa, exigência justa por ser a maior bancada da Câmara. Para valorizar sua posição na negociação, voltou a insinuar que lançará uma candidatura própria. Também o PSOL pensa lançar seu candidato.
PDT, PCdoB e PSB trabalham para que a esquerda esteja unida em apoio a um candidato lançado contra o do Planalto, para garantir a independência em relação a Bolsonaro. A presidência da Câmara está denunciando que o governo está estimulando por baixo do pano uma candidatura de esquerda para enfraquecer o campo adversário.
Claro que se uma bancada de 54 deputados como a do PT lançar seu candidato próprio, sem a menor chance de vencer, estará favorecendo a candidatura do governo, que tem sua base já montada. O PSB teve que tomar uma posição oficial contra o apoio ao candidato do governo, pois havia dissidentes negociando individualmente.
Uma votação de 80 a 0 no diretório nacional decidiu não apoiar o candidato do governo. O deputado Alessandro Molon foi incisivo: “É preciso preservar a independência da Câmara e proteger o Brasil de Bolsonaro”. Se a esquerda se unir em torno do grupo de Rodrigo Maia, a disputa fica parelha. A esquerda, como sempre, é o fiel da balança.
O deputado Molon é o que defende com mais ênfase a união da esquerda, lembrando que uma candidatura isolada não tem a menor chance de ganhar, e pode dar a Artur Lira a chance de vencer no primeiro turno. No momento, há a possibilidade de essa união vingar dentro do grupo, mas o PT continua considerando apresentar um candidato único da esquerda, mas dentro do bloco de Rodrigo Maia, que tem como mais provável candidato o deputado do PMDB Baleia Rossi.
O PT acha que a esquerda, com metade do bloco, tem o direito de indicar o candidato. A decisão deve sair em duas etapas. Na primeira, talvez hoje, a esquerda unida anunciará que faz parte do bloco de Rodrigo Maia com outros seis partidos conservadores. A segunda etapa será a escolha do candidato que una todo esse grupo. Como a eleição é 1º de fevereiro, ainda há tempo de chegar a um consenso, ou melhor, ao candidato que mais agregue apoios no grupo.
Cada disputa para a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado tem sua própria importância, mas esta está revertida de um significado especial, pois o presidente Jair Bolsonaro está empenhado pessoalmente.Toda vez que um presidente da República se mete na disputa interna da Câmara, a chance de ser derrotado é grande. Já deu em Severino Cavalcanti, já deu em Aécio Neves quebrando um acordo com o então PFL, que teve consequências graves para o governo Fernando Henrique.
Desta vez, está em jogo a agenda política do governo, que tem predominância nos temas regressivos de valores da sociedade e do meio-ambiente, em detrimento das reformas estruturais necessárias.