Mauro de Azevedo Menezes: A degeneração ética de um herói

Toda autoridade deve observar a autocontenção.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Toda autoridade deve observar a autocontenção

O exercício de funções públicas pressupõe a observância permanente de requisitos de honestidade. Essa premissa emerge da incidência do princípio constitucional da moralidade na administração pública (artigo 37, caput) e implica, entre outras obrigações, a rejeição de expedientes de abuso de poder e obtenção de vantagem pessoal.

A noção de integridade, essencial sob o paradigma da ética pública, costuma ser posta à prova justamente nas situações em que os agentes públicos são levados a encarar e esclarecer as suas condutas perante a sociedade.

Isso significa que o autêntico e definitivo juízo sobre a decência e a probidade das pessoas públicas não se concretiza quando elas, investidas em competências judicantes, investigatórias ou de controle, apontam desvios praticados por outros personagens da vida pública. É diante da prestação de contas de seus próprios atos que emerge a coerência das atitudes ou se escancara a desfaçatez dessas autoridades.

Prudência e moderação no exercício do poder são virtudes necessárias sobretudo quando exista alguma hipótese de envolvimento do interesse pessoal da autoridade em questão.

Resulta, portanto, em vilipêndio aos predicados da ética pública a atuação de ministro de Estado que desencadeie e interfira em processo investigativo sobre o qual tenha interesse direto, revelando a terceiros, em seu favor, parte do conteúdo de apuração sob sigilo.

A lei 12.813/2013 repele tal conflito entre interesse público e privado, que possa comprometer a predominância dos objetivos de Estado e influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública respectiva (artigo 3º). E determina que o ocupante do cargo previna ou impeça o conflito de interesses, sobretudo resguardando informação privilegiada, obtida em razão das atividades exercidas (artigos 4º e 5º, inciso I).

Em tais casos, a prática de atos de gestão em benefício próprio constitui séria transgressão (artigo 5º, inciso V) e pode configurar até mesmo improbidade administrativa (artigo 12), evocando a aplicação da lei 8.429/1992, por atentar contra os princípios da administração pública, ao violar o dever de imparcialidade (artigo 11, caput) e revelar fato que tem ciência em razão de suas atribuições e deva permanecer em segredo (artigo 11, inciso III).

Convém ainda assinalar que, de acordo com o princípio republicano, traduzido no dever constitucional de impessoalidade do administrador (artigo 37, caput), é imperioso o distanciamento entre o desempenho de funções públicas e o patrocínio de interesses pessoais da autoridade, especialmente ante suposições de irregularidades cometidas em função pública pretérita.

Por essa razão, o Código de Conduta da Alta Administração Federal, em seu artigo 10, prescreve que ministros de Estado e altas autoridades públicas federais respeitem eventuais impedimentos de participação em atividades ou decisões que possam vir a beneficiá-los.

Toda autoridade sob escrutínio público deve observar a autocontenção. Quem, alçado ao poder, considere-se ungido em missão redentora e, destituído de sobriedade e equilíbrio, ceda ao êxtase da glorificação, decerto cometerá abusos em sequência, revelando sua verdadeira face. Afinal, como escreveu Jorge Luis Borges, os espelhos têm algo de monstruoso.

*Mauro de Azevedo Menezes é advogado, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (2016-2018)

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