A crise que flagela o país é mais uma da turbulenta evolução pós-1930: aumento da população – de 40 a 207 milhões, hoje a 5ª população do mundo -, industrialização acelerada e urbanização desordenada.
Da revolução de 1930 até hoje vivemos dois períodos autoritários -1937-45 e 1964-85 -, o segundo com guerrilha rural e urbana; a revolução paulista de 1932, a intentona comunista de 1935 e o putsch integralista de 1938; participação na 2ª GM contra o Eixo, depois de discreto flirt com o fascismo; suicídio de um Presidente; renúncia de um Presidente e resistência à posse do Vice, resolvida por uma pífia experiência parlamentarista; impedimento de dois Presidentes; quatro (!) constituições; forte ingerência estatal na economia; surtos de inflação e seus planos salvacionistas; três (!) trocas de moeda; protecionismo chauvinista e sua política de substituição das importações; organização do trabalho e sindical à sombra do Estado; greves danosas à vida nacional; aumento da violência e criminalidade e por ai vai…
Um mosaico de atribulações contaminadas por inquietação institucional e conflitos políticos, pela guerra fria, pela ofensiva global do socialismo, pela fantasia terceiro-mundista, pela integração econômica global e pela ilusão mística do populismo. A condução política da atuação direta do Estado (saúde, educação, segurança…) ou normativa, indutora e fiscalizadora (economia) não respondeu aos desafios da transição tumultuada.
A responsabilidade cabe basicamente à condução política, com um complemento que agrega culpados: na evolução demográfica a qualidade não acompanhou a quantidade. Houve pequena – se tanto – melhora na educação elementar da base da pirâmide social, mas o preparo para a cidadania continuou precário. E nos extratos médio e superior predominou a especialização coerente com o desenvolvimento; a cultura retraiu, sobretudo na política. É esse perfil de consciência cidadã que – ressalvados os períodos autoritários – escolhe os atores do nosso melancólico enredo político.
Além de não cercear vícios tradicionais – patrimonialismo, clientelismo e corrupção -, a constituição de 1988 permitiu outros. Em evidência: instituiu um modelo de federação indutor da vassalagem financeira à União. Moldou uma sistemática político-eleitoral que vem gerando ficções partidárias sem consistência, unidas ou em conflito mais por recursos e cargos do que por idéias; o trato pelos deputados, da denúncia contra o Presidente, reflete essa conduta capenga: embora não se tratasse de julgamento de mérito, é moralmente frágil a decisão política depender do escambo (voto x interesse) à revelia da convicção de culpa ou inocência.
Manteve o Estado gigante na economia – e corrupto na proporção do gigantismo. Consolidou um modelo de walfare state (nele a previdência) incompatível com a realidade fiscal da União, Estados e Municípios. Concedeu ao serviço público o direito à sindicalização e à greve, dotando a máquina do Estado gigante com condições legais para pressionar por vantagens alheias à lógica fiscal e ao quadro salarial brasileiro, para resistir à redução do gigantismo estatal, que lhe é conveniente. E citado aqui porque afeta a crise atual, sobrecarregou o STF, corte constitucional, com ações penais de nosso imenso foro privilegiado.
Nos 1930 foi fácil ao poder revolucionário extinguir o carcomido Estado da república velha e sua democracia oligárquica. Está sendo difícil corrigir hoje vícios e equívocos da república de 1988, respeitado o paradigma constitucional, a ser respeitado, mas não usado para proteger interesses – a exemplo desse paradoxo insólito: o reflexo eleitoral da posição do congressista em correções ditas impopulares o leva a se manifestar contrário ao interesse do país, à solução de problemas que projetam um futuro dramático. O povo acredita nas retóricas interesseira ou populista que minimizam as correções a título de protegê-lo, ou não se interessa por conhecê-las e entendê-las – as alternativas da sistemática eleitoral, por exemplo.
O padrão das reformas vai pautar o país que teremos e isso preocupa. A lassidão cultural e a política brasileira cujo desempenho não acompanhou (léxico tolerante…) a complexidade crescente do país, já sugerem naturalmente a improbabilidade de mudanças que de fato atendessem a necessidade. E o tumulto político e institucional que estamos vivendo cria situações em que o interesse nacional é superado pelo político, paroquial e pessoal – problema bem refletido na deprimente (para a democracia) idéia de que será difícil “tocar” a previdência porque o governo já gastou sua “gordura” no escambo das denuncias contra o Presidente.
Mas se a despeito dessas dificuldades o saldo do processo reformista for satisfatório, ainda que não o improbabilíssimo ideal, o país estará mais capacitado para superar as atribulações da longa transição histórica de país rural com democracia oligárquica para país urbano, industrializado e com a 4ª democracia de massa do mundo. Ter-se-á evitado a continuidade da perda da fé na democracia, e do correlato crescimento da esperança – de que já existem sintomas e manifestações simpáticas – em alternativas messiânicas à direita e à esquerda, sancionadas pelo voto desiludido com o stato quo e iludido por fantasias populistas e salvacionistas ou seduzido por visões redentoristas até nostálgicas…. Inclusive alternativas messiânicas populares, que não seriam novidade histórica: aferido pelo apoio do povo o Estado Novo carismático de Getúlio Vargas teria sido uma ditadura popular…
A pergunta que se impões no fim de texto da natureza deste é: as reformas possíveis serão satisfatórias? Os interesses influentes nos partidos e a turbulência política que provavelmente se estenderá no canário eleitoral de 2018 não inspiram muita esperança.
(*) Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra brasileiro. Foi ministro da Marinha no governo do presidente Fernando Collor de Mello.