Em novembro de 2013, 44 anos após os tiros na alameda Casa Branca, Marighella foi homenageado no mesmo local, com a presença de Clara
William Helal Filho / O Globo
O Santos de Pelé enfrentaria o Corinthians de Rivelino a partir de 20h15 daquela terça-feira, 4 de novembro de 1969, em São Paulo. Por volta das 20h, quando o fluxo de torcedores rumo ao Estádio do Pacaembu já havia diminuído, um homem magro e alto para os padrões da época, de camisa clara listrada e carregando uma pasta preta, andava sozinho na alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, a três quilômetros da arena esportiva. Torcedor do Vitória do Bahia, revolucionário considerado o maior inimigo da ditadura militar, Carlos Marighella estava com a cabeça longe do jogo. Sob a iluminação precária da via, em noite de lua minguante, ele caminhava decidido na direção de um Fusca azul parado quase na esquina com a Rua Tatuí. Não imaginava que aqueles seriam seus últimos passos.
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Primogênito de um imigrante italiano, que desembarcara no Porto de Salvador em 4 de novembro de 1907, e de uma doméstica filha de ex-escravizados africanos, Marighella se lançara no ativismo em 1934, deixando o curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia para atuar no Partido Comunista do Brasil (PCB). Em mais de três décadas, enfrentou duas ditaduras (Estado Novo e regime militar), elegeu-se deputado constituinte (em 1946), foi preso várias vezes e torturado. Despistou por pouco a morte em mais de uma ocasião.
Já estava na mira da repressão quando, em 1968, recém-desligado do PCB justamente por pregar a revolta armada contra o governo dos generais, Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN). No ano seguinte, muito influenciado por uma viagem recente a Havana, escreveu o “Minimanual do guerrilheiro urbano” e, já com o AI-5 em vigor, comandou ações como a invasão da Rádio Nacional, em São Paulo, quando leu para os ouvintes um manifesto redigido por ele: “A polícia nos acusa de terroristas e assaltantes, mas não somos outra coisa se não revolucionários que lutam a mão armada contra a atual ditadura militar brasileira e o imperialismo norte-americano”.
O líder da ALN também conduziu assaltos a bancos para financiar a guerrilha, mas não participou da missão mais ousada do seu grupo. No dia 4 de setembro de 1969, os militantes sequestraram, no Rio, o embaixador americano Charles Elbrick, solto dois dias depois, mediante a libertação de 15 presos políticos, entre eles, os líderes estudantis José Dirceu e Vladimir Palmeira. A ação foi um dos maiores golpes contra o regime. Mas, nos meses seguintes, a polícia e as Forças Armadas tubinaram a repressão, efetuando dezenas de prisões, com sessões de tortura e execuções que desidrataram a ALN, principalmente em São Paulo, onde a organização tinha mais força. Este era um motivos para o líder do grupo, que morava no Rio, ter se dirigido ao “olho do furacão”.
De acordo com a biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras), de Mário Magalhães, em outubro de 1969, o militante de 58 anos de idade se preparava para levar a guerrilha ao campo, assim como havia feito Fidel Castro em 1959, com a Revolução Cubana. Antes, porém, queria reordenar o grupo na capital paulistana e providenciar a fuga de integrantes mais visados. Os amigos achavam que o líder da ALN, então o “terrorista” mais procurado pela repressão, também deveria deixar o país. Mas isso não estava nos planos dele.
O guerrilheiro ainda estava no Rio quando a ialorixá Antônia Sento Sé contou que pressentira uma “boca de lobo” e aconselhara seu ex-cunhado a não viajar para São Paulo. Mas Marighella ignorou o alerta de armadilha. Ele cruzou a Via Dutra de carro e chegou à cidade no fim de outubro, abrigando-se num apartamento na Rua Martim Francisco, no bairro de Santa Cecília, com a sua mulher, Clara Charf, a Jandira. Ao circular na metrópole, o guerrilheiro não tinha seguranças e nem andava armado. Mas vestia uma peruca e carregava sempre um frasco com duas cápsulas de cianureto. Achava melhor morrer do que ser preso. Não passaria de novo pelas torturas que sofrera na cadeia em 1936, durante a Era Vargas, ou em 1964, quando fora baleado e detido por agentes do governo logo após o golpe militar.
No dia 4 de novembro de 1969, Marighella acordou antes de amanhecer. À tarde, ele deixou o prédio na Martim Francisco após Clara olhar pela janela e avisar que o caminho estava livre. O baiano desceu até a rua e entrou no carro guiado por Antônio Flávio Médici de Carvalho, corretor de imóveis e militante da ALN. Eles foram até um telefone público, de onde Antônio Flavio, orientado pelo líder do grupo, ligou para a livraria Duas Cidades, de propriedade da Ordem dos Dominicanos, de onde o frei Fernando atendeu. “O Ernesto pediu que vocês o encontrem na gráfica hoje às 20h”, disse o corretor, de acordo com o livro de Mário Magalhães. O frade respondeu: “Tudo bem”, e Antônio Flávio voltou para o carro sem perceber nenhum nervosismo na voz do outro lado da linha.
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Na livraria, porém, enquanto o frei Fernando falava com o corretor pelo telefone, estava ninguém menos que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, respirando em silêncio no cangote do religioso. Chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), o agente de então 36 anos já era conhecido por ter comandado prisões, sessões de tortura e assassinatos de vários guerrilheiros nos porões do regime. Inescrupuloso e de postura sádica, em meados da década de 1970, o policial seria preso por envolvimento com o Esquadrão da Morte e o tráfico de drogas.
A polícia já suspeitava da ligação da ALN com frades dominicanos, que prestavam uma série de serviços operacionais para a luta armada. Entregavam mensagens, abrigavam militantes, escondiam armamento e tranportavam guerrilheiros. No rastro desse envolvimento, Fleury prendeu o frei Fernando no dia 2 de novembro, no Rio, junto com o colega frei Ivo. Submetidos a intensas sessões de tortura, eles revelaram como era sua comunicação com Marighella, alvo principal do Dops. Ao desligar o telefone, o religioso, à mercê do delegado, não teve opção a não ser contar para ele que “Ernesto”, na verdade, era o tão procurado líder da ALN e que a “gráfica” era o ponto da alameda Casa Branca em frente ao número 800, previamente estabelecido entre eles.
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Sem saber que os frades haviam “caído”, Marighella não imaginava que, nas horas seguintes ao telefonema, enquanto ele cuidava de outros afazeres, as forças do Dops e do Exército armaram, no local combinado com o frade, um cerco que incluía pelo menos sete automóveis cheios de menganas fortemente armados. Na caçamba de uma picape Willys, havia cinco policiais ocultos sob uma lona. Num Chevrolet da década de 1950, Fleury estava acompanhado da agente Estela Borges Morato, de 22 anos, que entrara para a Polícia Civil havia menos de um mês. Os dois fingiam estar namorando no carro parado nas imediações do ponto de encontro dos militantes.
Às 20h, Marighella chegou andando pela alameda Casa Branca e viu o Fusca azul parado perto da esquina com a Rua Tatuí. Dentro da pasta preta, havia mil dólares que ele entregaria aos freis Fernando e Ivo. O dinheiro viabilizaria a fuga de dois militantes até o Uruguai, utilizando uma rota oculta operada pelo Frei Betto. O líder da ALN abriu a porta do carona, puxou o encosto do assento para a frente e se acomodou no banco de trás. Imediatamente, diversos policiais cercaram o carro, arrancaram os frades de dentro e apontaram as armas para o guerrilheiro. Depois de ouvir Fleury dando voz de prisão, Marighella tentou alcançar sua pasta, mas levou uma saraivada de tiros. Um dos disparos penetrou seu tórax e arrebentou-lhe a artéria aorta.
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O militante ainda estava respirando quando foi retirado do carro e estendido sobre a rua, enquanto o sangue se esvaía. Ao revistá-lo, os policiais encontraram mensagens escritas em diferentes códigos. De acordo com a biografia de Mário Magalhães, os agentes ficaram surpresos ao ver que o guerrilheiro não estava armado e entenderam que, ao tentar alcançar a pasta preta, o “terrorista”, coerente com seu discurso, provavelmente estava interessado nas cápsulas de cianureto. Já em seu livro “Ditadura escancarada” (2002), o jornalista e colunista do GLOBO Elio Gaspari afirma que ele portava um revólver Taurus calibre 32.
Também segundo a investigação histórica de Magalhães, quando o alvo da tocaia já estava anulado, um automóvel Buick preto passou próximo ao Fusca, após “driblar” a interdição da alameda Casa Branca. Os agentes acharam que se tratava de uma reação de guerrilheiros à morte de seu líder e fuzilaram o carro, matando seu motorista, o protético alemão Friedrich Adolf Rohmann, ex-soldado nazista que se mudara para o Brasil em busca de uma vida sossegada após a Segunda Guerra Mundial. Os tiros, que deixaram a lataria do carro crivada de balas, também acertaram a perna do delegado Rubens Tucunduva, deixando-o gravemente ferido, e a cabeça da policial Estela Morato, que morreu três dias depois.
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Na versão oficial da época, entretanto, Marighella estava armado com uma pistola 9mm, e os policiais foram atingidos por um grupo de “terroristas” que chegaram atirando para vingar o líder morto. A foto acima foi feita depois que os agentes jogaram o corpo de Mariguella, já sem vida, de volta no banco de trás. O guerrilheiro foi sepultado em segredo no cemitério da Vila Mimosa, na presença apenas de coveiros e policiais, na manhã do dia 6 de novembro de 1969.
Em 1996, o Ministério da Justiça reconheceu a culpa do Estado pela morte de Marighella. Doze anos depois, ficou estabelecido que sua companheira Clara Charf deveria receber pensão vitalícia do governo. Em 2012, após o trabalho de apuração conduzido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, oficializou a anistia post mortem do guerrilheiro. Em novembro de 2013, 44 anos após os tiros na alameda Casa Branca, Marighella foi homenageado no mesmo local dos disparos, com a presença de Clara.