Tendo perdido a hora de ficar mais justa, a nação deverá se preparar para conviver com a pobreza por muito tempo
O fim do ano chegou sem que o governo fosse capaz de propor qualquer coisa que se parecesse com uma política para enfrentar o rebote da epidemia —em boa parte resultante, por sinal, da sua negação da gravidade da doença. O Planalto tampouco apresentou um plano claro de vacinação: só chutes a esmo sobre as vacinas que ainda não temos, nem as datas, a todo momento alteradas, do início da imunização.
Decerto esgotado pela enormidade que deixou de fazer, o ministro da Fazenda tirou férias (logo canceladas pelo presidente) sem resolver a situação da massa de brasileiros que sobreviveram até aqui graças às transferências que terminam no fim do mês. O número dos que ficarão a descoberto é impressionante. Por trás dele há pessoas de carne e osso vivendo em total insegurança, sem saber como pagarão as contas a partir de janeiro.
A pandemia colocou o Brasil face a face com a precariedade na qual estão imersos dezenas de milhões de habitantes que, vivendo sempre à beira da linha de pobreza, podem cruzá-la ao primeiro soluço da atividade econômica. A chegada da Covid-19 agravou uma situação preexistente, que os governos comprometidos com a redução da iniquidade não foram capazes de alterar estruturalmente, ainda quando proporcionaram alguma mobilidade social.
Da mesma forma, os abissais desníveis de renda provavelmente persistirão até bem depois da volta à normalidade. Tendo perdido a hora de ficar mais justa, lá pelos anos 1950 ou 60, a nação deverá se preparar para conviver por muito tempo —mais do que a vista alcança— com um imenso contingente de pessoas vivendo da mão à boca. Tem mais: caso a revolução tecnológica trazida pela internet das coisas, inteligência artificial, robótica e 5G produza apenas uma parte dos impactos sobre o emprego já previstos por especialistas, incontáveis brasileiros pobres, de baixa escolaridade e vivendo em precária pobreza se tornarão supérfluos.
Assim, qualquer sistema de proteção social que possa surgir deste que temos hoje —quando dispusermos de governos que voltem a pensar no país— não poderá dispensar o alicerce de um programa de renda básica robusto e permanente. Nesse sentido, o projeto de Lei de Responsabilidade Social apresentado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), embora modesto nos valores que propõe, é promissor. Inova na concepção —combinando garantia de renda e seguro— e permite pensar para além da pandemia. Desde que seja entendido como firme e necessária fundação de um conjunto mais amplo de políticas sociais, focalizadas em saúde, educação e previdência.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.