Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série Cárceres do veneziano Giovanni Piranesi
Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série “Cárceres” do veneziano Giovanni Piranesi (1720-1778). Pouca luz, ruínas, objetos estranhos pendurados no teto, escadas labirínticas que não levam a parte alguma. Em suma, caos e sombras.
De alguns tuítes emana um fartum conspiratório: “Infelizmente, eles não vão parar. Felizmente, nós também não.” Outros são tão presunçosos quanto vazios: “Uma sociedade não pode renunciar à ordem do espírito sem destruir-se a si mesma”. Entre uma que outra adulação ao chefe Bolsonaro, o tedioso registro de reuniões protocolares rivaliza com a rejeição de um dos pilares da ordem internacional contemporânea: “No mundo pós-Covid, precisamos de ações de cada país mais do que de ‘multilateralismo’”.
Ele não, mas de há muito os observadores conhecem a crescente importância de problemas que, por ultrapassar as fronteiras nacionais, não podem ser tratados apenas dentro de seus limites: intensificação do comércio e dos fluxos financeiros entre países; cadeias de produção regionalmente dispersas; ondas migratórias; aquecimento global; contrabando; tráfico de armas, drogas e pessoas —e, por fim, as pandemias. Sua existência explica a multiplicação dos instrumentos multilaterais, criados, lá atrás, para assegurar a paz. Sua complexidade e os conflitos entre desigualdade de poder das nações e regras da cooperação internacional dão conta da crise presente do multilateralismo.
Hoje o destino das instituições multilaterais depende de decisões tomadas em Washington e em Pequim. O Brasil pesa muito pouco nesta briga de cachorro grande, embora tenha trunfos importantes nos fóruns onde se discute o destino sustentável do planeta ou o comércio de produtos agrícolas.
Mas há outro espaço de ação internacional onde o Brasil poderia contar, não fosse a miopia nativista dos —vá lá a palavra— condutores de nossa política externa: a América Latina em geral e o espaço sul-americano em especial. O sumiço político do Brasil do seu entorno ajuda a fragmentar a região em grau raras vezes visto. Dividida, ela não conseguirá impedir, por exemplo, que a presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) lhe escape. Carente de mecanismos atuantes de consulta e cooperação, não logra oferecer solução própria para a tragédia venezuelana.
Hoje cada nação combate a seu modo o novo coronavírus. Se assim continuarem, quando vier a retomada, terão perdido oportunidade única de ter voz ativa nos movimentos a caminho de mudança da ordem internacional.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.