Moratória da venda de armas dos EUA iria à raiz da violência
Dois meses antes da morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, que hoje completa um ano, a Polícia Federal divulgou um relatório que indicava a venda de armas em lojas e feiras nos Estados Unidos como a principal fonte de fuzis e metralhadoras contrabandeados para o Brasil.
O monopólio de importação de armas dos Estados Unidos é das Forças Armadas e das polícias. A entrada clandestina dá-se por portos e aeroportos e, principalmente, pela fronteira com o Paraguai. O relatório identificou que a maior brecha para o ingresso direto da mercadoria americana no Brasil se dá pela importação de kits com itens avulsos para a montagem de armas.
Na casa de um parceiro do ex-policial militar Ronnie Lessa, um dos presos por suspeita de participação na morte da vereadora carioca e de seu motorista, foram encontrados kits como esses para a montagem de 117 fuzis. Como informa o relatório, seu preço de venda, em território nacional, pode alcançar dez vezes o valor pago nos Estados Unidos, o que pode explicar, em parte, como um ex-policial com soldo de R$ 7 mil mora num condomínio de classe média alta na Barra da Tijuca.
Depois da divulgação desse relatório, a Polícia Federal começou a pressionar o governo federal para que obtivesse, do governo americano, medidas de restrição à venda de armas, especialmente para o Paraguai, como mostrou Marcos de Moura e Souza (Valor, 20/3/2018). As tratativas esbarraram na indústria bélica americana ainda mais fortalecida na gestão Donald Trump.
A visita do presidente Jair Bolsonaro é a primeira de um chefe de Estado brasileiro aos Estados Unidos desde a divulgação do relatório da PF. No encontro com jornalistas na manhã de ontem, o presidente limitou-se a informar a existência de dois acordos a serem assinados, um para o uso comercial da base de Alcântara e outro, de bitributação. Na área de segurança pública, o Itamaraty limita-se a informar que o Brasil tem interesse em compartilhar informações e treinamento em lavagem de dinheiro, terrorismo e narcotráfico, no âmbito do foro de segurança criado no ano passado na gestão Michel Temer.
O intercâmbio jurídico/policial do Brasil com os Estados Unidos avança muito mais celeremente no combate à lavagem de dinheiro do narcotráfico e da corrupção. O distintivo da Swat no uniforme da escolta dos presidiários da Lava-Jato é auto-explicativo. A operação é, em grande, parte, fruto dessa colaboração. Foi na carona dela que o Ministério Público tentou criar uma fundação para gerir o dinheiro recuperado com a corrupção.
Em dobradinha com seus antigos companheiros da Lava-Jato, o ministro da Justiça saiu em defesa da fundação. Como inexiste uma previsão legal para seu funcionamento, porém, Sergio Moro resolveu contorná-la com uma medida provisória destinada a criar uma superagência para gerir os recursos advindos do crime organizado.
Dessa forma, a Lava-Jato perpetuaria uma fonte de recursos, a salvo das desvinculações orçamentárias pretendidas pelo Ministério da Economia. Da mesma forma que as legendas com representação no Congresso Nacional, a parceria entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol também teria seu “fundo partidário”.
Ao contrário do que se observa no combate à lavagem de dinheiro da corrupção e na repressão ao narcotráfico, com o qual o Brasil tem intensa colaboração, apesar de ser apenas um entreposto secundário para os Estados Unidos, o governo americano não oferece contrapartida quando se trata de limitar suas exportações de armas para a Tríplice Fronteira.
Não se poderia esperar outra coisa de uma visita cuja agenda foi moldada, em grande parte, pelo assessor de segurança nacional de Trump. John Bolton, que também é integrante atuante da Associação Nacional do Rifle, mais poderoso lobby de armas dos Estados Unidos, foi recebido num café da manhã preparado pelo próprio Bolsonaro quando ele ainda era vizinho de Ronnie Lessa. A presença de um suposto matador de aluguel e contrabandista de armas na vizinhança sem muros do condomínio passou despercebida não apenas da segurança do presidente da República como naquela do poderoso assessor de Trump.
Se as gigantescas resistências da indústria de armas americana sempre podem ser alegadas para as dificuldades de se arrancar uma moratória nas exportações americanas para a região, o mesmo não se pode dizer da liberalização da posse de armas no país. Depois de editar decreto que facilitou a posse de armas nos primeiros dias de seu governo, o presidente agora se dedica a um projeto de lei para ampliar o porte.
Ao justificá-lo, falou de seu costume de só conseguir dormir com uma arma na cabeceira mesmo depois que se mudou para a casa mais vigiada do Brasil. É mais ou menos a mesma lógica que guiou o comportamento de seu filho na posse. A despeito das dezenas de milhares de policiais e militares mobilizados para a defesa do pai, Carlos Bolsonaro postou-se armado às suas costas no trajeto que o levou ao Palácio do Planalto.
É leviana a vinculação da família do presidente ao atentado contra a vereadora, mas a ideia de que o Estado não é capaz de prover segurança e os cidadãos precisam fazer justiça com as próprias mãos está na raiz histórica de jagunços e milicianos.
É precipitado também afirmar que as mortes em Suzano decorreram do decreto de Bolsonaro. O massacre de Realengo, no Rio, em 2011, quando um ex-aluno entrou numa escola e matou 12 estudantes, deu-se na vigência do estatuto original do desarmamento. É, no mínimo, irracional, no entanto, que, ante uma tragédia do gênero, o presidente fale em um projeto de lei para facilitar o porte de armas, o vice-presidente atribua o crime ao vício dos jovens em videogames e o senador do PSL, Major Olímpio (SP), diga que o crime poderia ter sido evitado se os professores e serventes pudessem portar armas.
A maior parte das mortes nas escolas deu-se por armas de calibre 38, mas foi a presença de um inusitado arco e flecha em Suzano que deu forma à tragédia que se abateu sobre o Brasil. Ao instrumento, o dicionário também dá o nome de ‘besta’.