Lira e Ciro revelaram ambição de substituir Supremo na tarefa
Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico
Não foi uma surra. Apenas a reversão daquela que o presidente Jair Bolsonaro havia levado na comissão especial que analisou a proposta de emenda constitucional do voto impresso (23 x 11). A PEC não ultrapassou o sarrafo (308 votos), mas Bolsonaro pode dizer que conseguiu mais votos (229) do que seus opositores (218). Já pulou da cama com o discurso pronto.
A vitória foi da dupla formada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, que agora se arvoram a tutores do bolsonarismo. O primeiro não podia ver a PEC ser aprovada sob o risco de quebrar sua promessa aos partidos de que a levaria ao plenário para dar mais respaldo à derrota do presidente.
O segundo não poderia ver repetido o placar da comissão sob o risco de Bolsonaro se perguntar o que exatamente foi fazer na Casa Civil, visto que já se mostrara inútil nas arestas com o Judiciário.
A tática de distribuir os ovos nas cestas ficou explicitada com a votação do círculo mais próximo de Ciro Nogueira no PP. Sua mulher, Iracema Portela (PI), votou a favor da PEC. O mais leal de seus correligionários, Eduardo da Fonte (PE), votou contra. E o presidente interino do partido, André Fufuca (MA), se ausentou.
Com o placar, Lira e Ciro ainda esfregaram na cara dos descontentes que é inútil falar em impeachment. Usarão os 229 votos como a trincheira de votos contra a interdição do presidente. Bastam 172 deputados para manter seu mandato.
Foram capazes ainda de mostrar que o espírito franco-atirador do distritão está vivo. Tão vivo que Lira passou por cima do regimento para tentar antecipar a votação da reforma eleitoral ainda na noite de ontem. Os presidentes dos 10 partidos (MDB, DEM, PSD, PP, PSL, PSDB, PL, Solidariedade, Avante, Cidadania) que firmaram compromisso contra a PEC do voto impresso, não foram capazes de fidelizar suas bancadas.
Conseguiram apenas 99 votos, contra os 144 que aderiram à tese bolsonarista. A surra desse bloco só não foi maior porque as lideranças conseguiram tirá-los do plenário. Dos 65 ausentes, 35 integravam o bloco que havia apalavrado o voto contra a PEC.
A velha ameaça de não execução das emendas de relator, gerenciadas pela dupla do PP, foi abundantemente usada para que chegassem à “derrota equilibrada” do presidente. Mas não apenas. Parlamentares como Perpétua Almeida (PCdoB-AC), há duas décadas na Casa, nunca havia sofrido tamanho bombardeio em redes sociais por ter rejeitado o voto impresso na comissão.
O que ainda não se sabe é se o futuro da barganha será garantido pelo Supremo Tribunal Federal, Corte onde tramita uma ação de suspensão das emendas de relator, em mãos da ministra Rosa Weber. Com o resultado de ontem Ciro e Lira revelaram a ambição de substituir o STF na tutela do bolsonarismo. A investida da dupla sobre o voto impresso foi iniciada com o recuo do presidente do STF, Luiz Fux, do encontro dos Três Poderes depois de reiteradas ofensas de Bolsonaro a ministros da Corte.
A dupla também ficou fortalecida para avançar sobre o TSE na reforma do código eleitoral que tramita celeremente na Câmara com 900 artigos, discutidos em apenas quatro semanas de audiências públicas,
Em debate na Câmara, a relatora, deputada Margarete Coelho (PP-PI) deixou sem resposta a demonstração do diretor-executivo da Transparência Partidária, Marcelo Issa, de que a prestação de contas proposta pelo novo código eleitoral não permite que se sistematizem receitas e despesas dos candidatos porque abole a padronização do TSE.
Redes sociais, propaganda, mídia, comunicação digital, tudo isso, e mais uma miríade de termos podem ser usados, indistintamente, para registrar, por exemplo, o impulsionamento de mensagem por WhatsApp, dificultando o rastreamento dos valores gastos.
A ver até onde os tribunais superiores continuarão a comprar a tutela da dupla, tão garantida quanto os precatórios da era Bolsonaro. A primeira oportunidade que se apresenta é a ação sobre as emendas de relator que pode resultar, no mínimo, na exigência de transparência sobre sua destinação, o que arrebenta com a operação do Centrão.
A segunda oportunidade é aquela que se configura com a aproximação do ano eleitoral. Já ficou claro que Bolsonaro avança para deslegitimar as eleições, com ou sem voto impresso. Seus alvos preferenciais serão os Estados governados pela oposição em que os titulares, já reeleitos, deixarão seus mandatos para disputar outros cargos.
Noves fora João Doria (SP), os demais são do Nordeste: Camilo Santana (CE), Flávio Dino (MA), Paulo Câmara (PE), Renan Filho (AL), Rui Costa (BA) e Wellington Dias (PI). Nesses Estados, a polícia militar estará sob o comando de vices recém-empossados e que, portanto, carecerão da mesma experiência e autoridade daqueles que permaneceram por quase oito anos no cargo. É neste flanco que Bolsonaro mira.
O discurso, já reiterado pelo presidente depois da derrota da PEC do voto impresso, é o de que a fraude sobrevive. Com ele, Bolsonaro agirá para atiçar ânimos e contaminar, ainda mais, suas bases policiais e milicianas de maneira a causar tumulto antes e, a depender do resultado, depois das eleições.
Reunidos em “lives” com ex-ministros da Defesa, governadores têm sido alertados sobre riscos que correm. Poderão pedir operações de Garantia da Lei e da Ordem. Sua deflagração, no entanto, depende de um decreto presidencial e Bolsonaro não tem motivos em aquiescer.
Até aqui, nas 23 GLOs já concedidas em período eleitoral, durante duas décadas, as Forças Armadas têm atuado em auxílio ao TSE. Não é um almirante como Almir Garnier, que chegou ao topo da Marinha sem nunca ter comandado uma esquadra, que reescreverá esta história.
Se o Supremo poderá se valer das prerrogativas do artigo 142 da Constituição para autorizar GLOs contra as milícias bolsonaristas, é o presidente que envia as tropas.
Flávio Dino, um dos governadores mais preocupados com o porvir, tem dito que só uma frente ampla, como aquela formada contra o voto impresso, reunindo Judiciário, Congresso e manifestações como “Eleições serão respeitadas”, poderão legitimar o STF a encarar o comandante-em-chefe.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/tutela-do-bolsonarismo-em-disputa.ghtml