Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico
A mais de sete meses das eleições, há um surto de proatividade no ar de Brasília como se a transição já tivesse começado. É um movimento que parece obedecer mais aos interesses de seus protagonistas do que aos daquele que ainda tem urnas a computar para confirmar seu favoritismo.
A movimentação parte do pressuposto de que não se viabilizará uma alternativa à polarização. O diagnóstico é baseado numa cristalização de voto, inédita em campanhas eleitorais, dos dois principais polos. “Entre Deus e o diabo nunca houve terceira via”, resumiu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, naturalmente identificando-se ao primeiro dos personagens.
Além da legião de infiéis que pode ficar no meio do caminho até 2 de outubro, a síntese de Lula tem levado a uma corrida desarvorada pela concretização de propostas que podem abrir portas para o país, adornar o currículo dos proponentes ou nenhuma das alternativas anteriores.
Tome-se, por exemplo, o envolvimento do PT na solução legislativa para o preço dos combustíveis. O partido vestiu a camisa que diz não ao quanto-pior-melhor. Move-se pela percepção de que o aumento desenfreado no diesel pressiona os juros e agrava a dívida pública, cenário ruim para quem quer que se eleja e pior, ainda para o eleitor.
Ao protagonismo de dois senadores petistas, o autor de uma das propostas, Rogério Carvalho (SE), e o relator, Jean Paul Prates (RN), uniu-se a presteza do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Os dois primeiros enfrentam as mudanças na política de alianças do PT rumo à concessão de vagas majoritárias a aliados nos Estados.
Já o terceiro recusou-se a engrossar a fila de nanicos da terceira via e hoje está empenhado em manter para o PSD o principal posto de poder do partido, a Presidência do Senado, cuja negociação passa pelo presidente a ser eleito. Pacheco desobstruiu todos os caminhos para o PT. Ainda assim, a proposta acabou adiada.
Como as demais patrocinadas pelo Centrão, a proposta petista estava virando uma torre de babel. De uma desoneração restrita ao diesel acabou se estendendo à gasolina, duplicou o alcance do auxílio gás e, na criação de uma conta para a estabilização das tarifas, avançou sobre fundos constitucionais e reservas cambiais.
Prates apresentou a proposta na Fundação Perseu Abramo, com a presença dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff e ouviu que o partido não avalizaria o uso de recursos fiscais, das reservas ou dos fundos. A um deles, que assistia a reunião por vídeo, reagiu: “Sua posição é igual a de Paulo Guedes”.
O senador diz que é possível abrir mão de todos esses recursos vetados pelo PT e ainda dispor de um rol de alternativas – de royalties às participações especiais – que ganham com a alta de preço e financiariam esse colchão de amortecimento das tarifas.
Mas se já é difícil assumir um compromisso de resultado numa tramitação qualquer, dirá quando se trata de uma proposta com tamanho impacto no meio de uma campanha.
Não deu outra. A votação acabou adiada, com desgastes que agora não se acumularão apenas sobre o presidente Jair Bolsonaro e os governistas mas também sobre o PT e seu candidato a presidente. Se o partido aquilata o risco e resolve enfrentá-lo, é jogo jogado. “Pior seria nos omitirmos”, diz Prates. Pode ter razão, mas não há dúvida que a conjuntura está prenhe de personagens que entraram nessa de governar no lugar de Bolsonaro porque não têm nada a perder.
Um dos motivos do adiamento foi o pedido do presidente da Câmara para acertar os ponteiros da proposta de maneira a que, aprovada no Senado, viesse a tramitar mais facilmente na Câmara.
Pacheco e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL) hoje disputam quem presta mais serviços àquele cuja volta à Presidência da República dão como certa. Depois que a proposta da PEC dos combustíveis de seu partido na Câmara teve que recuar, Lira abriu espaço para o jogo de Pacheco com o PT prosperar e agora se aproximou.
O presidente da Câmara já havia dito ao Valor que sua prateleira é sortida. Tem reforma tributária, administrativa e até o fim do teto dos gastos, mercadoria que já se acreditava esgotada. Preço sob consulta e entrega imediata ou entre a eleição e a posse.
Foi a vez de Pacheco anunciar que a votação da reforma tributária na CCJ do Senado. Isso depois de as duas Casas passarem os últimos dois anos se debatendo entre a proposta de uma e da outra.
Se a campanha de Lula se servir de todas as bandejas que os garçons do Congresso lhe apresentam vai chegar a outubro empaturrada e com dificuldade de encontrar a porta de saída.
Também se viram bandejas circulando no Tribunal de Contas da União na decisão que deu curso ao processo de privatização da Eletrobras. A decisão contemplou os interesses assumidos no governo e, principalmente, no Congresso, desde a tramitação da MP da Eletrobras, votação que ficará para os anais da barganha nacional. O ministro Vital do Rêgo foi vencido, mas no voto dele e de outros ministros, foi dada a senha para contestações futuras em tribunais superiores.
Não havia garçons na entrevista do presidente do Banco Central à Miriam Leitão, na GloboNews, mas o tom estava francamente contaminado pela capitulação das finanças à ideia de que Lula já levou. Não se tratou de uma análise política, mas de preços do mercado, que fique claro.
A interlocutores das autoridades monetárias nacionais surpreende a admiração que passaram a nutrir pelo gesto do presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, que convidou o presidente do Banco Central chileno do governo Sebastian Piñera, Mario Marcel, para a Fazenda.
No Chile, o gesto foi visto como a saída encontrada por Boric para evitar que os conservadores partissem para bombardear o plebiscito que confirmará a nova Constituição, na qual está pendurado o futuro governo. No Brasil, a capitulação do mercado precede a eleição, o que não significa que as baterias não possam ser recarregadas depois da posse.
Roberto Campos Neto tem admiradores no PT. Como cabe tudo nessas bandejas de Brasília, a colocação de seu nome, à sua revelia, vem com um combo: a possibilidade de Lula escolher o presidente do BC. Precipitado? É claro. Num país cujo presidente fantasiou-se de estadista do outro lado do planeta e quer mobilizar as Forças Armadas para uma guerra dentro de seu próprio país, tudo ainda pode acontecer.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/transicao-precipitada.ghtml