Campanha bolsonarista contra quarentena ecoa em comunidades pobres até que a covid-19 atinja as avós, pilar de coesão social de famílias que têm, em suas filhas, o principal arrimo
Quando Júlio Ludemir começou a tossir, percebeu que, na verdade, se tornara parte de uma sinfonia. Assim como em outras favelas do país, na Babilônia, zona sul carioca, não é preciso encontrar o vizinho para descobrir que ele tosse. Produtor cultural de iniciativas como a Festa Literária das Periferias, Ludemir mora na Babilônia há sete anos. Já viu a favela mudar de cara muitas vezes.
Cenário de “Orfeu Negro” (1958) a “Tropa de Elite” (2008), a Babilônia já foi do PT de Benedita da Silva, do Comando Vermelho, da UPP, do Terceiro Comando, de Marcelo Crivella, dos turistas estrangeiros que se hospedam em seus “hostels”, da chuva que arrasou seus barracos, da falta d’água que perdura em tempos de pandemia e, finalmente, de Jair Bolsonaro, que arrebanhou a franca maioria de seus eleitores em 2018 e hoje é poupado pelas panelas de seus moradores. Ludemir só não viu ainda a favela se transformar pelo coronavírus.
Os mototáxis continuam pra cima e pra baixo deixando o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora numa saia justa. A restrição privaria a comunidade de importante fonte de renda e de comunicação. Por outro lado, seu tráfego, sem capacete para o passageiro, incorreria em infração de trânsito. Por ora, permanecem em operação, com álcool gel no assento e no lado de fora do capacete, como fonte de contágio.
Assim como o mototaxista, o barraqueiro de praia, a manicure e o flanelinha de carro para alugar não têm outra fonte de renda que não seja aquela trazida por sua exposição diária na rua. Por isso, continuam a sair do barraco, ainda que a vida no asfalto, de onde muitos tiram seu sustento, esteja parada.
Julio Ludemir é o primeiro a assumir a irresponsabilidade de não ter feito o confinamento. Além da idade (60 anos), a doença já se espraiava na cidade. No primeiro dia dos sintomas, precisou usar o banheiro de uma birosca e, sem perceber que faltava água, acabou por quebrar a torneira. A dificuldade de manter a higiene necessária à prevenção não impede que as pessoas continuem nos bares, as crianças, nos becos, e muitos, no culto pentecostal à noite.
Ludemir já vê vizinhos se queixarem de pastores que, sem interromper os cultos, fazem deles vítimas de discriminação por parte de outros moradores. O chefe da Igreja Universal, Edir Macedo, chegou a gravar um vídeo em que diz que o debate sobre a doença “é mais uma tática de satanás, que trabalha com o medo, o pavor e a dúvida.”
O produtor cultural diz, no entanto, que a vida na favela só vai mudar quando as avós começarem a ser contaminadas. Se a mulher que trabalha por conta própria é o arrimo de famílias à margem do tráfico e do crime, é a avó que, encarregada dos netos e da gestão familiar, se transforma no pilar da vida nas comunidades. A sobrevivência delas vai moldar, em grande parte, a reação das favelas ao avanço da covid-19.
É a avó do andar de baixo a maior preocupação de Bárbara Nascimento, professora de escola pública de 42 anos. Moradora do Vidigal, favela que se espraia entre o Leblon e a Barra da Tijuca, na zona sul do Rio, Bárbara foi uma das primeiras moradoras a se envolver com a campanha de conscientização pela quarentena. A sua se transformou em casa de ferreiro com espeto de pau.
A despeito da militância de Bárbara, o marido, Marcelo, que trabalha como autônomo no conserto de eletrodomésticos, não parou. Continuou a trabalhar até o sábado, 14 de março, quando o Brasil já tinha centenas de casos mas nenhuma morte confirmada. Na segunda, começou a tossir.
Respondeu a questionários virtuais e constatou que estava com a doença. Apesar de hipertenso, Marcelo, aos 45 anos, preferiu não procurar um serviço de saúde. Como os dois cômodos da casa ficam em andares separados, Bárbara ficou no de cima, que tem acesso à laje onde o filho do casal, de oito anos, pode brincar, e Marcelo, no de baixo. Alternam-se para usar a cozinha.
No primeiro pavimento moram três mulheres. A avó que cuida da neta para a filha, que vive de bico, poder trabalhar. Tem cesta básica entregue pela associação dos moradores, mas está exposta porque a filha continua na rua. Na laje ao lado, várias famílias ainda se reúnem para fazer churrasco.
Se a Babilônia voltou às ordens da UPP, o Vidigal continua sob o Comando Vermelho. E lá, a boca de fumo não parou nem decretou toque de recolher. Blogs como o “Portal Favelas” convocam para a quarentena. É uma das tantas iniciativas comunitárias que receberam rasgado elogio do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para quem não tem acesso à internet, porém, a única fonte de alerta é o carro de som do supermercado da região, que passa apenas nas vias principais e uma sirene da associação de moradores. Nem um nem o outro são ouvidos por quem mora na parte mais elevada do morro.
Lideranças da favela têm encomendado faixas e pedido para o carro rodar mais vezes, mas é tudo pago e o cobertor, curto. A solidariedade, cimento de coesão social na favela, tem limites.
“Ninguém tá fazendo nada por amor”, queixa-se Bárbara. Nos fóruns de que participa, a professora recomenda que as pessoas deixem de pagar contas de água, luz, telefone ou dívidas. E guardem o dinheiro para comer e comprar remédio. A começar por sua mãe, que mora em Guaratiba, na zona oeste, aos 67 anos, hipertensa e diabética, gasta metade de sua renda em remédios.
A dificuldade de amplificar a recomendação de quarentena na comunidade se reflete em crianças – e suas avós – que permanecem nas vielas e becos, cuja largura não ultrapassa dois metros, e homens que lotam os bares. Dos motoristas de ônibus, auxiliares de enfermagem, trabalhadores das companhias de eletricidade, água e limpeza que lá moram, Bárbara ouve que se eles saem de casa para trabalhar, podem também fazê-lo para se divertir.
Mesmo no Vidigal, favela que, ao contrário da Babilônia, não votou em Bolsonaro, a pregação do presidente pelo fim da quarentena ecoa. Lá, o panelaço, mais forte do que em muitos bairros de classe média, convive com entregadores como aquele que leva remédio para o marido de Bárbara. Seu comentário – “Todo mundo um dia vai morrer mesmo, então é melhor trabalhar” – foi um copia e cola da fala de Bolsonaro no domingo, 29, em que, pela enésima vez, passeou pela rua contrariando as autoridades sanitárias.
Em Sapopemba, bairro do extremo Leste de São Paulo, zona mais populosa da cidade, o discurso bolsonarista também ecoou. Nas favelas da região, monopolizadas pelo PCC, houve toque de recolher e suspensão dos bailes funk nos dois primeiros fins de semana da quarentena, mas a pressão presidencial contra a quarentena já surtiu efeito para levar mais movimento para a rua e incutir conflito na comunidade.
Em Carapicuíba, cidade-dormitório no oeste da Região Metropolitana de São Paulo, os conjuntos habitacionais construídos pelo programa Minha Casa Minha Vida estão sendo geridos com toque de recolher e regras como a de que apenas um integrante por família sai de casa para abastecê-la no supermercado. A maior parte dos conjuntos habitacionais para a população de baixa renda da cidade é gerida por empresas dominadas por ex-policiais militares.
Psicóloga de 48 anos, nascida e criada em Sapopemba, onde trabalha num centro de reabilitação do hospital do bairro, um dos maiores da capital, Cláudia Diroli prevê um atendimento congestionado em seu serviço na volta ao trabalho, a começar pelos próprios profissionais de saúde que estão na frente de batalha. Diz que a associação entre privação e medo vai afetar a saúde mental das pessoas e provocar toda sorte de transtornos pós-traumáticos.
À frente de uma campanha de mobilização para doações a entidades de moradores de rua e associações de moradores de Heliópolis, favela da zona sul de São Paulo, a socióloga Luna Zarattini arregimentou 450 voluntários e R$ 80 mil, além de doações de alimentos e produtos de limpeza, na primeira semana de atuação. Viu, no entanto, a demanda crescer muito mais que a oferta.
Apesar disso, ainda não se registra, a não ser na ação dos robôs bolsonaristas, um risco iminente de saques desenfreados nas comunidades mais pobres do país. À frente de uma equipe que analisa a origem e a propagação de mensagens em redes sociais, Manoel Fernandes foi despertado pela postagem de saques em duas cidades, Curupira, município de 24 mil habitantes, no interior de Pernambuco, e São Vicente, no litoral paulista. A notícia vinha acompanhada de fotos e vídeos de saques ocorridos num supermercado na Guatemala.
Não estivesse o país em meio a uma pandemia sob o comando de Jair Bolsonaro, a notícia teria se perdido. Não foi o que aconteceu. Em um único dia, a equipe de Fernandes identificou 6.667 tuítes sobre saques. A propagação desta notícia falsa foi associada ao caos a ser provocado pela quarentena da covid-19, com desabastecimento e violência.
As Forças Armadas chegaram a ser colocadas de prontidão para a eventualidade de caos generalizado no país provocado pelo crime organizado. O sinal de alerta foi dado pela rebelião, com fuga, em cinco presídios paulistas antes de o confinamento se espraiar pelo país. A associação entre o PCC e as fugas acabou não se comprovando. Tampouco a associação entre crime organizado e saques nas comunidades carentes. É na saúde das avós que o termômetro social hoje parece estar sintonizado. No início da semana, a Rocinha, na zona sul do Rio, registrou a primeira morte de um morador de favela. Maria Luiza do Nascimento, de 70 anos, morava com filha e neta na parte alta da comunidade.