Se as eleições de 2016 foram marcadas pelo cansaço, as de 2020 o serão pelas perdas – de vidas, empregos e perspectivas
A campanha eleitoral transcorreu num ano em que a pandemia matou 160 mil pessoas, desempregou 12 milhões, e deixou 7 milhões sem aulas. Por mais que as disputas municipais tratem do que o jargão dos candidatos chama de zeladoria, não há como subtrair da corrida pelas prefeituras e Câmaras de Vereadores, o drama nacional.
Mais do que o cansaço de 2016, pavimento para a praga da antipolítica que se esparramaria pelo país em 2018, a disputa de domingo será marcada pela perda – de vidas, empregos e perspectivas. Foi este o denominador comum das pesquisas feitas por Nilton Tristão ao longo de 2020.
De tão discreto, o instituto que dirige (Opinião) nem perfil em redes sociais tem, mas passou pelo crivo rigoroso do site Pindograma, que analisou quase 2 mil pesquisas no país, como o de maior grau de acerto. Por não seguir a metodologia estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral, que classifica de binária, Tristão não publica suas pesquisas. Trabalha por encomenda de candidatos.
Do que tem colhido nas pesquisas – quantitativas e qualitativas – conclui que nunca houve distância tão abissal entre os anseios de um eleitor machucado e a oferta do mercado de candidatos. Desse fosso, aposta, sairá a maior taxa de votos em branco, nulos e abstenção de uma eleição municipal desde a redemocratização.
É bem verdade que não se trata uma aposta arriscada. O próprio TSE, lembra Tristão, tem alertado na sua propaganda eleitoral que, na presença de quaisquer dos sintomas da covid-19, o eleitor deve se abster de votar. Mas aqueles que forem aos locais de votação, aposta, não estarão propensos a bravatas e propostas contra-tudo-o-que-está-aí.
O cansaço de 2016 fez ascender gente que se dizia avessa à carreira que estava a abraçar – os empresários João Doria (São Paulo), Alexandre Kalil (BH) e Hildon Chaves (Porto Velho), além do professor universitário Clécio Vieira (Macapá) – e de outros, como Marcelo Crivella (Rio) que, apesar de agarrado à política há muito tempo, ainda age e fala como se num templo estivesse.
As perdas de 2020 dão o tom da moderação. De radical, basta a conjuntura. Basta ver as bem-sucedidas campanhas de Guilherme Boulos, em São Paulo, e de Manuela d’Ávila, em Porto Alegre. O candidato do Psol conteve as ironias que marcaram sua campanha presidencial. Agora faz blague de si mesmo, ou de seu “celtinha prata”, o carro com 120 mil quilômetros rodados que nunca o deixou na mão.
Assiste de dentro de um carro à abordagem de uma repórter de sua campanha a eleitores que temem sua fama de invasor para depois aparecer com um sorriso a explicar os pressupostos do Estatuto das Cidades. Exibe a entrevista-depoimento com o apresentador José Luiz Datena que o conheceu, na virada do século, pelas histórias que seu pai, o epidemiologista Marcos Boulos, fonte do jornalista, lhe contava. Do relato, sai quase um São Francisco de Assis redivivo.
Nas viradas, uma transmissão por 24 horas de sua vida, o eleitor teve acesso ao aquário de suas filhas e à mesa de café da manhã da família – sem leite condensado no pão. A intimidade não explica como montaria uma maioria na Câmara de Vereadores, mas ajuda a moderar a imagem e aproximá-la do paulistano médio. Se conseguir o voto útil dos petistas, chegará ao segundo turno contra o prefeito Bruno Covas (PSDB), que tem na sua luta pessoal contra o câncer o maior ponto de adesão com este eleitorado machucado pela pandemia.
Também é outra Manuela aquela que se apresenta ao eleitor de Porto Alegre. A candidata do PCdoB, vice de Fernando Haddad em 2018, se apresenta como alguém que “sofreu e aprendeu”. Tanto ela quanto Boulos podem vir a ser beneficiados pelo comparecimento do eleitorado jovem, presumivelmente maior do que a média por causa da pandemia. Não têm uma eleição fácil, mas se passarem para o segundo turno já terão conseguido dar o tom da esquerda para 2022. E não apenas da esquerda.
De candidato da antipolítica em 2016, Alexandre Kalil (PSD) virou o conciliador pragmático que só não transige com o coronavírus. Quando o presidente da República culpou os prefeitos pelas mortes, respondeu: “Muito ajuda quem não atrapalha”. Cartola do Atlético Mineiro, vetou a presença de público em estádio de futebol durante a pandemia como queria Bolsonaro – “É coisa de débil mental”. Chega ao fim do primeiro turno mantendo Belo Horizonte com uma taxa de transmissão da covid abaixo de 1 (o que indica desaceleração do contágio) e caminha para se reeleger facilmente no primeiro turno, derrotando um candidato abertamente bolsonarista.
Daqueles mais identificados com o presidente da República, só Wagner Gomes, o deputado federal Capitão Wagner (Pros), tem chances de passar para o segundo turno em primeiro lugar. Para isso, precisou se afastar de Bolsonaro. O candidato do Republicanos em São Paulo, Celso Russomanno fez o mesmo movimento, mas não adiantou. Talvez porque quando ele diz que morador de rua não pega covid por não tomar banho ninguém sabe se é ele ou Bolsonaro quem esteja falando.
Levada para as “lives” do Palácio do Alvorada – pode TSE? – por outro frequentador e sanfoneiro do evento, o presidente da Embratur Gilson Machado, a candidata do Podemos no Recife, a delegada Patrícia, despencou. A capital do Estado ruma para ser a única no país com dois candidatos de esquerda, os deputados federais e primos João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT). É o oposto do que se vê nas capitais do Centro-Oeste. Nesses oásis do agronegócio, onde os marqueteiros paulistas que lá estão reclamam do preço dos restaurantes, a esquerda não tem qualquer chance de chegar ao segundo turno.
A eleição nas capitais está longe de refletir o conjunto do país. São 5.568 disputas diferentes comandadas pelas realidades locais. Só o medo da morte e da fome os une. O resultado eleitoral de domingo não determina o futuro de Bolsonaro. No limite, pode mostrar um presidente da República dissociado do sentimento do eleitor. O que é metade do caminho para 2022.