Mais grave que Lula não ser candidato, é a perda de relevância
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dispensou tanto a gravata verde-amarelo quanto o avião do amigo que usara no primeiro depoimento. Tomou um litro de água na primeira meia hora. Desde o câncer, explicou, passou a secar sua garganta com mais frequência. Desde o primeiro interrogatório do juiz Sergio Moro, em maio, também encurtou seu pavio.
O depoimento do ex-ministro da semana passada e o abrigo já demonstrado pela segunda instância às suas sentenças facilitaram a vida do juiz, que só derrapou ao sugerir que Lula estivesse rancoroso. O ex-presidente perdeu o humor e a fleuma com a qual dera lições de política a Moro em maio. Deixou-se encurralar com mais facilidade e irritação. Revelou conselhos como o recebido de um ex-presidente – “Se quiser fazer as coisas e não ser bisbilhotado, não converse por telefone, nem em restaurante, caminhe com a pessoa e vá falando na estrada”. E foi obrigado a engolir a repreensão do juiz para que não voltasse a chamar a procuradora que o inquiriu de ‘querida’.
Lula tenta se equilibrar entre a liberdade e o legado político, mas o depoimento mostrou que custa a manter a frieza de estrategista que sempre o caracterizou. O pavio de Lula não se consumiu à toa, mas talvez não seja mais suficiente para fazê-lo candidato ou, ainda, elegê-lo novamente presidente.
Lula encurralado é talvez o dado mais relevante para o modelo de país que está por ser avalizado pelas urnas de 2018. Não apenas pela perda de competitividade do mais importante partido de esquerda do país, mas, principalmente, pela ausência de relevância da legenda nos rumos do país.
Esta é uma das principais teses de artigo, ainda inédito, da professora (USP/Cebrap) Marta Arretche, “Democracia e redução da desigualdade econômica no Brasil: a inclusão dos outsiders”. Ainda não há dado empírico ou discurso político capaz de contestar o fato de que os anos petistas foram o de maior queda na desigualdade do país da redemocratização. Os novos estudos feitos a partir do Imposto de Renda, pago não mais que por 17% da população, mostram que o topo dos contribuintes e sua base avançaram igualmente na apropriação da renda enquanto a classe média refluiu.
A constatação ajuda a entender os movimentos iniciados em 2013, mas é insuficiente para explicar o que aconteceu com os demais 83% da população, beneficiada por políticas públicas, e não apenas dos governos do PT. A métrica que ignora o impacto de educação, saúde e saneamento parece inapropriada para países que ainda custam a universalizar essas políticas, como o Brasil.
Os governos do PT contribuíram mais com a redução da desigualdade porque promoveram uma maior valorização do salário mínimo e expandiram, sob o chapéu do Bolsa Família, programas sociais criados no governo anterior. Mas não foi o partido que inaugurou esse processo de inclusão. O artigo relembra que o período entre o pós-guerra e o golpe de 1964 ainda é o de maior avanço na queda de desigualdade. A ditadura não o estancou. A entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho nos anos 1970 fincou estacas adiante.
O passo mais largo, porém, só viria com a Constituição de 1988, pela vinculação de todos os benefícios ao salário mínimo e pela fixação de patamares obrigatórios de gastos com educação e saúde. Avançou ainda com a expansão do voto para os analfabetos, que aumentou a pressão, sobre a arena eleitoral, de contingentes em busca de um ingresso para o longo e arrastado espetáculo da inclusão.
Quando esses avanços foram registrados, a esquerda somava menos de 10% das cadeiras na Constituinte. Perdida ante a possibilidade de Lula ser excluído da cédula eleitoral, a esquerda não vai encontrar rumo sem se curvar à tese arredondada no artigo de que setores conservadores da política brasileira tinham a percepção de que a democracia não seria sustentável se não comportasse políticas de combate à pobreza.
O PT surgiu na política em contraposição a um sindicalismo tradicional que resistiu a políticas universalizantes como a extensão da Previdência Social para os excluídos do mercado formal de trabalho. Sobreviverá com menos dificuldade a um ciclo eleitoral que tende a privilegiar um discurso de derrubada de barreiras ao investimento se conseguir identificar aliados no mercado partidário à tese de que a retomada do crescimento não pode se dar pela exclusão.
A busca desta convergência está longe de ser fácil. Primeiro porque o foco exclusivo na renda apropriada pelo 1% mais rico descuida das contradições inerentes às disputas do resto do bolo. Um exemplo disso é a apoplexia com a falta de reação da sociedade à reforma trabalhista. A esquerda, como lembra Marta Arretche, finge desconhecer o contingente de pessoas ocupadas que já não têm os benefícios da CLT, que dirá as prerrogativas dos estatutários.
A maioria dos eleitores continuará a votar por políticas redistributivas enquanto sua fatia no bolo for desigual. Suas preferências, no entanto, estão longe de ser homogêneas. Apenas deixarão de ser relevantes se houver mudanças no sistema que transforma voto em mandato. Daí a centralidade das regras para 2018 em tramitação no Congresso. Mais importante que o fundão público que tende a perpetuar a atual representação no Congresso são as regras que preservem a vontade da maioria eleitoral e os estímulos à convergência na política.
Dessa convergência depende a sobrevivência da esquerda como força política relevante. É inegável que sua presença na competição eleitoral pressionou partidos de centro e de direita a atender a demandas da maioria, como se viu em muitas das políticas de um Fernando Henrique Cardoso sempre acossado pelos petistas.
A velocidade com a qual a esquerda promoveu inclusão não lhe conferiu passaporte para reproduzir vícios históricos na ocupação do Estado. Seu enfraquecimento na arena eleitoral, porém, não contribui para a preservação dos interesses da maioria. O pós-Lula depende, em grande parte, da habilidade da esquerda em identificar os novos interesses e convergências de uma sociedade em que um terço dos brasileiros ingressou no mercado eleitoral depois de sua maior liderança ter chegado ao poder.
O ex-presidente teve o melhor momento do depoimento quando disse que Palocci deixou o governo porque não era possível um ministro da Fazenda brigar com um caseiro. Foi a primeira vez que falou isso publicamente. O político que até hoje melhor conheceu o povo brasileiro custou a se dar conta de que #somostodoscaseiros.