Ao dizer que os salários da alta administração são baixos, o ministro da Economia dá discurso a categorias aquinhoadas que aprofundam a desigualdade no serviço público
“Os salários da alta administração são baixos. Vejo aqui o ministro Bruno Dantas, que em qualquer banco pode ganhar US$ 4 milhões por ano. Vai ser difícil convencê-lo a ficar no TCU [Tribunal de Contas da União]. Ele vai receber muitas propostas. Já levaram o [Nelson] Jobim [ex-ministro do STF, hoje diretor do BTG Pactual]. Vão levar todo mundo…. Estou vendo aqui Ana Carla Abrão, que tentei manter mas foi abduzida pelo Santander. Tá ganhando cinco vezes mais do que ganharia aqui, certo?”.
Errado. Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, corrigiu educadamente o ministro da Economia. Paulo Guedes entrou e saiu tão de supetão numa “live” promovida na semana passada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que confundiu Ana Carla com Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro e hoje economista-chefe do Santander.
O ministro da Economia, que não ouviu a preleção de nenhum dos outros participantes da “live”, nem ficou para o debate depois que acabou de falar, chegou mesmo a dizer que o funcionalismo tinha uma distribuição salarial “quase socialista”. Nos últimos meses, o ministro perdeu vários colaboradores, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida, hoje economista-chefe do BTG, e o ex-diretor da Secretaria Especial do Ministério da Economia Caio Megale, hoje economista-chefe da XP. A mágoa parece ter enviesado sua visão sobre o tema.
Mal Guedes desapareceu da tela, Ana Carla, uma das economistas de mais longeva militância pela reforma administrativa no país, tomou a palavra e analisou os males da desigualdade no serviço público que o ministro demostrara ali firme disposição em aumentar.
Ana Carla citou pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros que, baseado em dados de salários públicos e privados entre 2001 e 2015, concluiu que o coeficiente de Gini (índice de concentração de renda) do setor privado havia caído 0,44 para 0,37. No mesmo período, o Gini do setor público permanecera quase estagnado, passando de 0,48 para 0,46.
O descasamento entre a desigualdade do setor privado e a do setor público aconteceu, principalmente, ao longo dos governos petistas, quando houve a recomposição salarial de carreiras, inclusive na elite do funcionalismo, como a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal. Esse divórcio, que começou na administração Lula, foi preservado na gestão Temer e encontrou porto mais do que seguro sob Jair Bolsonaro.
O governo que acaba de enviar uma proposta de reforma administrativa com a qual pretende cortar R$ 300 bilhões da máquina pública em dez anos é o mesmo que mandou para o Congresso a regulamentação do bônus de produtividade da Receita e resistiu a limitar o da AGU e da PGFN ao teto constitucional.
Aprovado pelo Congresso no limbo entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o bônus da Receita foi abraçado pelo ministro Paulo Guedes a despeito de contestações por todos os lados. O bônus já foi contestado pelo Tribunal de Contas da União tanto pela inexistência de previsão orçamentária quanto pela extensão a aposentados, condição em que, por óbvio, o funcionário deixa de ser produtivo para a instituição.
O acórdão do TCU não impediu o governo de enviar para o Congresso uma medida provisória (899) em que embutiu a regulamentação do bônus. A MP foi aprovada pela Câmara e, no Senado, ficou sem o jabuti sob a justificativa de que o bônus poderia levar a um acréscimo de até 80% nos vencimentos de mais de 15 mil funcionários. Salários de R$ 30 mil poderiam vir a ser acrescidos de mais R$ 21 mil, o que estoura o teto constitucional de R$ 39 mil
Enquanto não é regulamentado, os funcionários da Receita continuam a receber “apenas” R$ 3 mil de acréscimo. Desde que começou a ser pago, em 2018, o bônus tem levado a questionamentos sobre a procedência das autuações da Receita, uma vez que, quanto maior o valor cobrado, maior seria a vantagem auferida pelo auditor.
Com o discurso da meritocracia com o qual defende a reforma administrativa, Paulo Guedes pretende aliar o bônus por eficiência da Receita à sua visão de Estado. Sugere convergência ao que é, sobretudo, uma concessão a servidores cujas greves, como a de 2018, paralisou a arrecadação e implantou o caos nas aduanas.
O mesmo se aplica aos honorários de sucumbência que, previstos desde a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2016, acrescentaram, por mês, a mais de 12 mil advogados da União e procuradores da Fazenda, uma média de R$ 6 mil a salários que chegam a R$ 27 mil.
Os honorários reproduzem, para o serviço público, a lógica inerente à advocacia privada, que cobra percentuais sobre causas ganhas. O benefício é de mão única. Não se aplica, com supressão de vencimentos, quando a União perde a causa e é obrigada a pagar à parte que a acionou na Justiça.
No ano passado, uma emenda do Novo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fez com que os honorários advocatícios se somassem aos vencimentos dos funcionários para efeito de aplicação do teto constitucional. O presidente Jair Bolsonaro resistiu, mas o Congresso driblou a indisposição do governo e o dispositivo limitante passou a valer a partir de janeiro. Como a LDO só tem validade de um ano, porém, a limitação acaba em dezembro.
Os penduricalhos dessas categorias foram instituídos numa época de baixo desemprego e forte valorização das carreiras públicas nos governos petistas, quando muitos servidores deixaram seus cargos atraídos por uma vaga no Ministério Público ou no Judiciário. A paralisação dos concursos públicos, o congelamento de salários e, principalmente, a crise no mercado de trabalho fez sumir as circunstâncias que, um dia, serviram de justicativa para os penduricalhos.
A proposta do governo os contorna, bem como deixa de lado os vencimentos de carreiras sobre as quais o Executivo pode legislar mas não o faz, como o Ministério Público – graças, em grande parte, ao crédito que o Procurador-Geral da República tem hoje no Palácio do Planalto – e a magistratura.
O argumento de que o Executivo não pode se debruçar sobre essas carreiras não se sustenta. O governo não teve o mesmo “pudor”, diz o consultor legislativo e professor da FGV, Luiz Alberto dos Santos, quando enviou a reforma da Previdência que alterou direitos previdenciários de servidores e magistrados, embora tenha preservado – e ampliado – as prerrogativas dos militares.
Foi por pressão de procuradores e magistrados que o Congresso congelou a proposta que tramita desde 2016 e regulamenta a submissão de todos os servidores públicos do país, de todos os Poderes e entes da Federação, ao teto constitucional dos vencimentos dos ministros do Supremo.
Já há, no entanto, gestões, no entorno do presidente, para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o projeto que acaba com os penduricalhos gerais da nação. A iniciativa tende a indispor o governo e o Congresso com corporações poderosas. No Judiciário, por exemplo, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Fux, um dos dois únicos ministros da Corte que percorreu toda a carreira da magistratura (a outra é a ministra Rosa Weber), foi um baluarte na defesa do auxílio-moradia.
A magistratura, de acordo com Ana Carla Abrão, já rompeu o limite de gastos estabelecidos pelo Orçamento para o Judiciário e, apesar de ter salários médios que ultrapassam o dos ministros do Supremo, não sinaliza disposição de abrir mão de seus benefícios extra-teto.
Nem mesmo os ministros sem vínculos com a corporação, como Dias Toffoli, são capazes de impor uma agenda de enxugamento. No apagar das luzes de sua gestão no colegiado, Toffoli presidiu a sessão que aprovou um benefício equivalente a um terço dos vencimentos dos juízes para aqueles que forem responsáveis por mais de uma comarca. De acordo com o CNJ, a remuneração média dos magistrados brasileiros é de R$ 50 mil, 28% a mais do que o teto constitucional.
Relatora da comissão por onde tramitou a proposta que poda os benefícios extra-teto, a senadora Katia Abreu (MDB-TO) atribui a criação de penduricalhos à fixação de um salário alto para o ingresso em algumas carreiras públicas. A rápida progressão faria com que os funcionários atinjam o topo da remuneração com muitos anos de serviço pela frente, estimulando a busca por indenizações extraordinárias..
Se a desigualdade no serviço público é ainda maior do que aquela do setor privado, os penduricalhos puxam ainda mais o desequilíbrio na Federação. Nas contas de Katia Abreu, dos 11,4 milhões de servidores públicos do país, 57% (6,5 milhões) estão nos municípios, 32% (3,6 milhões) estão nos Estados e 11% (1,1 milhão) estão na União.
Esses servidores consomem R$ 928 bilhões em recursos, sendo que cada instância da Federação abocanha, grosso modo, um terço desse valor. Nas contas da senadora, os servidores municipais têm salários equivalentes aos da iniciativa privada. Os estaduais ganham de 35% a 40% a mais e aqueles da União têm vencimentos 98% superiores aos daquelas funções exercidas no mercado privado.
Todos, a princípio, concordam com a submissão ao teto constitucional, mas unicamente para consumo externo. Se presidente, equipe econômica e Congresso estivessem, de fato, empenhados em “não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos” já teriam encarado a trama dos privilégios e prerrogativas das carreiras mais aquinhoadas da República.