Sem 308 votos para mudar a Carta, boiada da reeleição das Mesas quer passar no STF
É preciso notório saber jurídico para chegar ao Supremo Tribunal Federal, mas basta um domínio rudimentar da língua portuguesa para entender o parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Apesar disso, a conjunção dos astros na capital federal indica que a tese que permitirá a reeleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) e do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência das Mesas tem a maioria dos 11. E por que renomados magistrados submeteriam sua reputação a tamanho constrangimento?
Já o fizeram antes, explicam os defensores da tese. Sim, fartamente, sem que nenhum deles se sinta impedido de olhar o espelho de manhã cedo. O casamento homoafetivo é o exemplo mais usado de reinterpretação sem mudança constitucional. Trata-se, porém, de dispositivo envelhecido por uma sociedade mais inclusiva que passou a reivindicar a cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais.
A julgar pela dedicação dos arautos da tese, se não há uma “parada do fico” no calendário, em defesa da reeleição das Mesas, é porque não há pleno conhecimento das ameaças que pairam sobre a democracia. Os argumentos vão dos predicados do principal adversário de Maia, o deputado ficha suja Arthur Lira (PP-AL), que conquistou seus dois últimos mandatos pendurado em liminar do STJ, até o ataque de hackers no TSE.
Investigações preliminares da Polícia Federal que indicariam o envolvimento de deputados federais do círculo mais próximo de Bolsonaro, teriam bastado para convencer os recalcitrantes. Quando o ministro Luís Roberto Barroso entrou na linha de tiro pelo apagão do TSE no primeiro turno, Maia foi o primeiro a se solidarizar. O ministro Gilmar Mendes, relator da reeleição, o segundo.
A reiterada desconfiança do presidente Jair Bolsonaro na lisura das urnas eletrônicas seria outra evidência de que a própria alternância de poder estaria em risco. Por isso, o atentado contra a alternância no outro Poder, o Legislativo, estaria justificado. Com dois precedentes. Um, protagonizado por Ulysses Guimarães, “o pai da Constituinte”, que presidira a Câmara na legislatura que antecedeu a da nova Carta e pretendia ficar no cargo para comandar os trabalhos. O regimento interno foi, então, modificado para abrigar a permanência do progenitor.
O segundo precedente se deu com o próprio Rodrigo Maia. Com a cassação do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, o deputado, na condição de vice, cumpriu o mandato-tampão. Quis disputar a reeleição na mesma legislatura e foi, para isso, liberado pelo Supremo, tendo como relator o decano, Celso de Mello.
Uma nova reeleição de Maia não se encaixa em nenhum dos puxadinhos. Mas se é a democracia que está em jogo, emende-se a Constituição, ora pois. O problema mora aí. Como inexistem 308 votos para isso na Câmara, é mais fácil conseguir os seis votos no Supremo. Ou não.
Como Edson Fachin, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello estariam irredutíveis, sobrariam Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Kassio Nunes. É sobre esta trinca de ministros que se concentram Lira e o presidente da República, que vê em Maia a reencarnação de Eduardo Cunha, aquele que o convocou ao microfone para cassar o mandato de uma presidente da República em nome de seu torturador.
Para contra-atacar a ofensiva, os defensores da tese que beneficia Alcolumbre e Maia se comprometeram com uma única recondução, ainda que o voto do relator ainda não seja conhecido. Se o compromisso sossegou Lewandowski, ainda pairam dúvidas sobre o comportamento dos outros dois.
Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, acaba de interromper dois plenários virtuais, mesma modalidade, sem sessão ou debate, na qual está pautada a reeleição. E Toffoli interrompeu um julgamento onde a condição de réu de Lira estava em pauta.
Se isso acontecer, a expectativa é de que Gilmar, no início do recesso, dê uma cautelar liberando a recandidatura de Maia e Alcolumbre. Caberia então, ao presidente da Corte, Luiz Fux, na condição de plantonista do recesso, cassar ou não esta medida. Depois de tomar posse demarcando terreno em relação a Gilmar Mendes, Fux dá sinais dúbios. Tomou a decisão, por exemplo, de levar a plenário as ações penais que o colega pretendia julgar na turma que preside, transformada em cemitério da Lava-Jato, mas tem-se mostrado sensível à tese de que a reeleição seja uma norma interna da Câmara, ainda que a matéria esteja estampada na Constituição.
Os partidos no Congresso que, até aqui, têm assistido o espetáculo de camarote, resolveram colocar sua colher de pau nesse angu. Parlamentares de oposição com os quais Maia e Alcolumbre contavam agora dizem que são contra a reeleição. Ninguém sabe se manterão a postura se a recandidatura for avalizada e se, num segundo turno, Maia for a única alternativa anti-Bolsonaro.
O fato é que o desempenho do DEM nas eleições municipais tanto aumentou seu cacife como articulador dos palanques de 2022 quanto gerou reações da oposição que teme ser imprensada na disputa nacional e receia a ofensiva sobre suas bases regionais, como PSB e PT deixaram claro.
Não é apenas o Legislativo que está em jogo, mas um combo de poderes aliançados no Judiciário e até no Ministério Público. Entre as cartas na manga de Gilmar Mendes está a relatoria da ação sobre a prisão domiciliar do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que o ministro tirou de pauta para levá-la a julgamento no momento que lhe convier. O procurador-geral da República, Augusto Aras, que toca pelo diapasão de Gilmar, parece ter concluído que o papel de engavetador-geral não tem trazido sucesso para suas ambições e resolveu remontar as forças-tarefas regionais.
O pacote ainda prevê a arbitragem, via TCU, da queda de braço, dentro e fora do governo, sobre os limites fiscais do próximo ano. Vide a decisão, desta semana, autorizando o empenho de despesas a serem feitas apenas em 2021.
O combo que se apresenta para resgatar a democracia pretende fazê-lo atropelando a alternância do poder. Não tem um dono só a boiada que, na era bolsonarista, quer arrombar a cerca da Constituição.