Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população, menção ao estado de sítio teve efeito inverso
O presidente Jair Bolsonaro trocou o ministro da Saúde sem arredar um milímetro de suas convicções sobre o combate à pandemia do coronavírus. E ainda valeu-se do discurso de apresentação do novo ministro para subir o tom contra os governadores e o Congresso. Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população sobre a condução de um governo desfalcado do principal gerente do combate à pandemia, a menção ao estado de sítio, ainda que para dizer que o instrumento não seria usado, teve efeito inverso.
Ao citar o “clima de terror que se instalou na sociedade”, Bolsonaro tentou relacioná-lo ao desemprego provocado pelas medidas restritivas dos governos estaduais e não ao medo da morte pela doença. Subiu o tom contra os governadores, com quem trava uma disputa no Congresso no projeto de compensação pelas perdas na arrecadação: “Se governadores e prefeitos exageraram, não coloquem essa conta nas costas do povo brasileiro”. São Paulo e Rio, de João Doria e Wilson Witzel, são os Estados que mais perderam receita.
Acusou-os de cercear direitos individuais, quando “quem tem direito a estado de defesa ou estado de sítio é o presidente da República”. Não defendeu o uso de nenhum dos dois instrumentos, mas sua menção no discurso não é fortuita. Tanto reitera sua autoridade num momento em que foi derrotado na Câmara pelo projeto de ajuda aos Estados e no Supremo pela tentativa de afrouxar o isolamento social, quanto tenta colocar governadores e prefeitos no mesmo balaio de seu voluntarismo.
Ao demitir o ministro mais popular de seu governo em meio à elevação da curva de óbitos da covid-19, Bolsonaro fez aposta arriscada. Os panelaços, durante o discurso, anteciparam prejuízos que já busca socializar. Se ele perde com a demissão de Henrique Mandetta, governadores e prefeitos, alheios ao fato de que “junto com o vírus veio uma máquina de moer empregos”, não podem sair ganhando: “O remédio não pode ser mais danoso que a doença”.
O novo ministro, ao seu lado, demonstrou que não montará em cavalo de batalha por suas convicções. A julgar pelo artigo que escreveu, no início de abril sobre a covid-19, Nelson Teich pouco mudaria na gestão do ministério. “Felizmente, apesar de todos os problemas, a condução até o momento foi perfeita”, escreveu. No texto, defendeu a opção pelo distanciamento social: “É uma estratégia que permite ganhar tempo para entender melhor a doença e implementar medidas que permitam a retomada econômica do país.” No discurso em que se apresentou ao país limitou-se a dizer que não haverá mudanças bruscas: “Saúde e economia não são excludentes.”
A comparação de Bolsonaro entre os direitos individuais pretendidas pelos governadores e os danos que um estado de sítio poderia provocar deve ter surtido efeito sobre Teich. O novo ministro enfatizou a necessidade de aprimorar a coleta de dados e informações sobre a doença, mas não retomou a proposta do artigo (“estratégias de rastreamento e monitorização, algo que poderia ser rapidamente feito com o auxílio das operadoras de telefonia celular”). Ao contrário de seu antecessor, que sempre alertou contra a impossibilidade de se fazer isso num país de 200 milhões de habitantes, Teich quer testes em massa. O novo ministro promete agir sob bases “técnicas e científicas”. Hermético, não se fará entender facilmente pela população, o que, pelo histórico de comunicador de Mandetta, deve ter contado, para o presidente, a favor de sua nomeação.
Dono de uma empresa de gestão tecnológica de saúde, o novo ministro surpreenderá se aparecer com o jaleco do SUS. O Sistema Único de Saúde teve uma breve menção em seu discurso de ontem, quando Teich disse que o programa de testes o envolveria, bem como a saúde suplementar e as empresas. Não deixa de ser uma evolução. No artigo do início de abril, entre 1.991 palavras, não se encontra nenhuma menção ao sistema público que tem segurado o tranco da pandemia no país.