Prefeitos e vereadores aprovam versões semelhantes à ajuda federal e podem fazer desta eleição a mais favorável aos detentores de mandato desde a redemocratização
O bônus que o auxílio emergencial trouxe para a popularidade do presidente da República inspirou prefeitos e vereadores que disputarão as eleições de novembro a criar programas parecidos ou incrementar aqueles já existentes nos municípios. A implantação do benefício é apenas mais um de conjunto de fatores que pode fazer desta eleição a disputa mais favorável, desde a redemocratização, para aqueles que já detêm mandato no Executivo ou Legislativo.
Entre os municípios que adotaram a medida contam-se tanto aqueles que criaram o benefício por lei aprovada nas Câmaras de Vereadores com duração prevista para a pandemia, como Altamira (PA), Niterói (RJ), Serra (ES) e São Cristóvão (SE), quanto outros que aumentaram a base de beneficiários de programas já existentes, como Campinas (SP). Contam-se também aqueles com benefícios destinados a categorias profissionais específicas, como em São Paulo (SP) e Campina Grande (PB).
A criação do benefício, porém, está longe de ser pacífica nos municípios. Em Serra, por exemplo, município da Região Metropolitana de Vitória, cuja população de mais de meio milhão de habitantes supera a da capital capixaba, colocou prefeitura e Câmara em lados opostos.
Os vereadores aprovaram o benefício municipal de R$ 500 por três meses para trabalhadores informais com renda de até três salários mínimos, com previsão para atingir 42 mil famílias. O prefeito Audifax Barcelos (Rede), que ruma para concluir seu segundo mandato, barrou e os vereadores derrubaram o veto.
A prefeitura alegou que a Câmara não pode criar despesas – esta onerará os cofres municipais em R$ 63 milhões – e os vereadores rebateram com o argumento de que a emenda constitucional que estabeleceu o estado de calamidade pública no país abriga sua vigência.
O benefício causa conflitos até mesmo em municípios em que prefeitos e vereadores disputam a atenção dos eleitores, como Altamira. Domingos Juvenil (MDB) é candidato à reeleição na cidade que fica a 816 quilômetros de Belém, tem 115 mil habitantes e apenas nove leitos de UTI. Enviou para a Câmara projeto que contava, para sua viabilidade, com recursos das emendas impositivas dos vereadores para somar R$ 2 milhões. Previa-se a destinação de R$ 900, em três parcelas, para o pagamento a cinco mil pessoas.
Definiram-se como elegíveis para o recebimento feirantes, carroceiros, catadores, ambulantes, taxistas e mototaxistas, motoristas de aplicativos e pequenos produtores rurais. No decreto que regulamentou a distribuição do benefício, porém, a prefeitura determinou que apenas aqueles que não tivessem sido agraciados com o auxílio emergencial federal poderiam receber o benefício municipal
A regulamentação gerou revolta entre moradores e troca de acusações entre vereadores e prefeito. Como o benefício foi regulamentado apenas em meados de julho, a grande parte dos elegíveis tinha a expectativa de que o programa pudesse esticar o período em que receberiam ajuda, iniciado em abril com a primeira parcela do programa federal. Reportagem da TV Vale do Xingu, afiliada do SBT, deu conta de que se não for possível acumular, apenas 20 mototaxistas receberão o auxílio municipal.
Dois municípios que aprovaram o benefício para catadores de materiais recicláveis, São Paulo e Campina Grande adotaram critérios distintos. No mesmo valor de R$ 600 e pela mesma duração de três meses, o benefício poderá ser acumulado com o auxílio federal na capital paulista, mas não na cidade paraibana.
Em grande parte dos municípios, os projetos foram aprovados em julho, com validade até o período que antecede as eleições. Em Niterói, porém, tramitação e aprovação do benefício foram concomitantes às do auxílio federal, com a conclusão de ambos no fim de março.
Além do benefício de R$ 500 para famílias de baixa renda ao longo de três meses, ao custo de R$ 54 milhões, a Prefeitura de Niterói também enviou para a Câmara um crédito especial para pequenas empresas e cooperativas, de até R$ 250 mil, além de profissionais liberais, de até R$ 25 mil.
O programa, com custo de R$ 35 milhões para os cofres municipais, cobrirá os juros dos empréstimos realizados durante a pandemia. O terceiro projeto enviado e aprovado pela Câmara Municipal foi o financiamento do salário de funcionários para empresas que se comprometeram a não demitir. Os programas concorrem com o do governo federal no escopo e na vigência. O prefeito, Rodrigo Neves (PDT), está no segundo mandato.
As entidades que agregam gestores municipais, como a Frente Nacional de Prefeitos, não têm levantamentos sobre o número de cidades que adotaram programas do gênero. Seu presidente, Jonas Donizette (PSB), prefeito de Campinas, diz que grande parte dos municípios adotou alguma ação de complementariedade de renda, ainda que a maior parte o tenha feito de maneira mais focalizada que o governo federal.
Em Campinas, por exemplo, cidade do pioneiro Bolsa Escola, programa anterior ao Bolsa Família, a prefeitura ampliou a base de beneficiários de um auxílio alimentação (R$ 94) de seis mil para 26 mil pessoas e facultou seu uso também para a compra de produtos de higiene.
São Cristóvão, na Região Metropolitana de Aracaju, também optou por um programa focalizado. O projeto aprovado pela Câmara Municipal em maio contemplou servidores que tiveram seus contratos suspensos na pandemia, como professores, motoristas e merendeiros. A prefeitura se comprometeu a pagar 30% do salário base desses profissionais por três meses e recontratá-los com a volta das atividades.
A adoção de programas de transferência de renda por prefeituras alinhadas aos partidos da base do presidente Jair Bolsonaro foi facilitada pelo favorecimento nos repasses. Como mostrou “O Globo” (17/8), a média de verba por habitante liberada para prefeitos de centro ou direita até julho foi 56% maior do que aquela enviada a municípios comandados por legendas de oposição.
O pagamento desses benefícios, ainda que muito distintos em valor e amplitude, complementará uma gama de outros incentivos para a vantagem do detentor de mandato. Fica mais difícil distinguir a distribuição de cesta básica para famílias afetadas para a pandemia daquela destinada à arregimentação do voto. A pandemia dificulta, por exemplo, a campanha de quem pretende se fazer conhecido porque inibe reuniões e o corpo a corpo tradicional das eleições municipais. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Lara Mesquita diz que a imprevisibilidade da pandemia sobre o resultado das eleições é comparável àquela que sobreveio à facada sofrida pelo presidente Jair Bolsonaro na disputa presidencial.
À força redobrada do situacionismo, num período em que a máquina pública ganhou peso no giro da economia, somem-se as dificuldades da campanha virtual para aqueles que disputam pela primeira vez. Por mais que a internet barateie a divulgação das campanhas, muitos segmentos de mais baixa renda ainda têm limitação de acesso.
São pessoas que não conseguem baixar o aplicativo da Caixa Econômica Federal para fazer o cadastro do auxílio emergencial ou para que os filhos acompanhem aulas A distância, o que dirá para seguir campanhas eleitorais, diz Lara. Além disso, as novas normas eleitorais também restringiram o alcance tanto do WhatsApp quanto do Facebook nas campanhas.
Essas dificuldades podem vir a colocar em xeque a previsão, feita por muitos analistas, de que a campanha de 2020 seria recordista em número de candidatos. A previsão se baseia nas mudanças já aprovadas para a eleição de 2022, o fim das coligações nas eleições proporcionais e a cláusula de desempenho. Ambas as mudanças pairam como uma guilhotina não apenas sobre a existência de pequenos partidos mas também sobre os planos de expansão das legendas médias.
Ex-deputado federal, articulador, nos anos 1980 da Frente Liberal que elegeu Tancredo Neves e criou o PFL, além de fundador do PSD, Saulo Queiroz conhece como poucos as armadilhas do mercado eleitoral. E diz que os partidos terão que fortalecer seus quadros municipais porque atingir o coeficiente eleitoral numa disputa de uma eleição sem coligações, como a de 2022, vai ser muito mais difícil.
A disposição para disputar mesmo com chance nula de eleição é tarefa de militantes locais dos partidos. É a formação dessa militância que está em jogo nessas eleições. Vem daí a expectativa de que aumente o número de candidaturas. A Proposta de Emenda Constitucional que adiou as eleições municipais para novembro, estabeleceu 26 de setembro como data limite do registro de candidatos na Justiça Eleitoral.
Incentivos, portanto, para uma campanha com número recorde de candidatos não faltam. Só que ninguém contava com a pandemia. O espraiamento da doença, especialmente em comunidades mais pobres, fez surgir novas lideranças que atuam na mobilização de moradores para a proteção de suas famílias, na arregimentação de doações e na pressão sobre o poder público.
Por mais que o coronavírus tenha feito surgir uma nova geração de militantes locais empenhados na defesa de suas comunidades, o desestímulo pode ser ainda maior – a começar do reforço inédito, para aqueles que são candidatos à reeleição, dos pacotes de transferência de renda.
É uma sinuca tanto para os vereadores, que aprovaram a maioria desses pacotes, mas que não recebem crédito por eles, como também para aqueles que querem entrar no jogo e não são identificados como aptos a batalhar pela manutenção, cada vez mais em risco, dos benefícios.