Passava de meia-noite quando Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira, hóspede em um apartamento no Rio, recebeu uma chamada telefônica. Foi orientada a descer sozinha e esperar por uma viatura. Era a resposta a seu telefonema da manhã ao Dops, quando insistira em ver sua filha para acreditar que estivesse viva. No carro, um soldado, como se estranhasse a presença de uma senhora de quase 60 anos, de livre e espontânea vontade, ali, entre fuzis, lhe perguntou: “A senhora de onde é, da Paraíba?”
Sem olhar para o lado, Elzita, respondeu que era pernambucana como as mulheres de Tejucupapo. A quem lhe perguntava se eles sabiam a que se referia, ela respondia: “Se não sabiam, ficaram sabendo”. Em 23 de abril de 1646, as mulheres de Tejucupapo, no litoral norte do Estado, lutaram contra invasores holandeses numa batalha com 300 mortos.
O diálogo se deu em 1972, dois anos antes da prisão de seu quinto filho, Fernando Santa Cruz. O relato da conversa entre dona Elzita e o ancestral do presidente Jair Bolsonaro foi resgatado pela jornalista Sílvia Bessa na coletânea de perfis “Heroínas Dessa História”, a ser lançada pelo Instituto Vladimir Herzog, em setembro, sobre mulheres cujos familiares desapareceram nas mãos dos agentes do Estado durante a ditadura.
Das 15 perfiladas, dona Elzita foi aquela que mais tempo peregrinou por gabinetes e porões. Morreu aos 105 anos, um mês antes de seu neto, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ser vítima da descarga bolsonarista. Não se dava por satisfeita com versões. Queria o timbre do Estado no papel passado.
Reunidos em sua casa em Olinda, em seus últimos anos de lucidez, seus filhos lhe relataram o depoimento do delegado Cláudio Guerra (“Memórias de uma Guerra Suja”, Topbooks, 2012). No livro, o delegado afirma ter levado dez cadáveres de presos políticos, entre eles, Fernando, dos Destacamentos de Operações de Informação, os DOIs, e da Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), para serem carbonizados no forno da Usina Cambahiba, no Rio. As cinzas desses corpos, conta, teriam sido misturadas ao vinhoto, o resíduo fétido da destilação do álcool de cana-de-açúcar.
“Quem disse que Fernando teve o corpo incinerado? Um delegado? Um torturador? Tem provas disso? Não?” Os filhos não tiveram tempo de reagir: Ela encerrou a história: “Vamos jantar”. Nunca a veriam chorar nem usar luto, ainda que não lhe faltassem motivos.
Filha de um dono do engenho da Zona da Mata, casou-se aos 17 anos com o sobrinho do então governador Estácio Coimbra. O marido viria a morrer de tuberculose três meses depois. Viúva antes da maioridade, conheceria o médico sanitarista Lincoln Santa Cruz, dez anos depois. Com ele teria dez filhos, quase todos insurgentes.
Admiradores de Luís Carlos Prestes e de dom Hélder Câmara, os Santa Cruz nunca apoiaram o golpe de 1964, mas foi a militância dos filhos que os estigmatizou. Um dia receberam a visita de um verdureiro. “Estão dizendo que seus filhos são comunistas. O que é comunismo, doutor?”. Lincoln mostrou-lhe a mesa posta e respondeu: “É todo mundo poder comer de tudo que tem nesta mesa”.
Se o humanismo do pai lhes serviu de esteio, era a mãe que fazia a retaguarda. Dona Elzita aborrecia-se com as tarefas domésticas, gostava de ler romances e não era mãe de fazer cafuné, mas virava uma onça na hora de defender a militância dos filhos. Numa passeata em 1967, no Recife, Fernando havia acabado de completar 18 anos e foi preso ateando fogo a uma bandeira dos Estados Unidos. Seria enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
Contra a vontade do marido, conseguiu uma certidão falsa de nascimento atestando que ele tinha “aproximadamente” 17 anos e o soltou. Dois anos depois, Marcelo, o mais velho dos filhos homens, chegou em casa com a notícia de que havia sido expulso da Faculdade de Direito do Recife, e que teria que deixar o país.
O delegado do Dops disse que se o estudante fizesse uma declaração dizendo não ser comunista, seu passaporte sairia. Marcelo, que se elegeria vereador em Olinda pelo PT, partido ao qual foi filiado até 2017, se rebelou. Achava a exigência uma humilhação. “Você só fala o que quiser”, apoiou a mãe, que contornaria o delegado para conseguir a emissão do passaporte para o filho.
Na primeira prisão de Rosalina, a filha mais velha, no Rio, arrumou as malas e deixou com o marido a incumbência de prestigiar a formatura de outra filha. Entre telefonemas e peregrinações noturnas, lhes disseram que, se ela quisesse sair, teria que colaborar. Rosalina, que trabalhava como assistente social do Banco Nacional de Habitação (BNH), fazia mestrado em ciências sociais e militava na VAR-Palmares, como a ex-presidente Dilma Rousseff, depois se tornaria professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “O que o senhor quer que eu diga pra minha filha? Que ela seja dedo-duro? Que ela fale o que fez e que vocês cumpram a lei e a julguem, mas não batam na minha filha”. Naquela prisão, Rosalina, grávida, abortaria depois de uma sessão de choques e chutes.
Quando Fernando desapareceu, a experiência vivida pelos irmãos mais velhos deu a dona Elzita a esperança de que ele lhe seria devolvido, estraçalhado, mas vivo. Ele havia deixado o Recife em 1970 com a mulher, Ana Lúcia, sua companheira de militância na Ação Popular, rumo ao Rio, depois de sucessivas prisões. Conseguiria um emprego no governo estadual e ingressaria no curso de direito da Universidade Federal Fluminense. Só a militância era clandestina.
Na AP, atuava na busca de companheiros desaparecidos, mobilizando familiares e advogados. Não há registro de sua participação em ações armadas. Em 1972, depois de passar em concurso público do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, se mudaria com a mulher e o filho, Felipe, recém-nascido.
No Carnaval do ano seguinte, decidiu voltar ao Rio, onde encontraria os irmãos Marcelo, Rosalina e Márcia, e reveria companheiros da AP. Pela manhã foram à praia. Ao meio-dia se separaram. Combinaram de se encontrar no dia seguinte. Lá estavam todos, menos Fernando. Na véspera, ele saíra às 16h da casa de Marcelo para, com Eduardo Collier Filho, companheiro de militância desde a adolescência, irem ao encontro de Doralina Rodrigues, também da AP. No jargão da clandestinidade, “caíram ao cobrir um ponto”.
O pai se entregou à tristeza, mas dona Elzita, com a mãe de Collier, Risoleta, pôs o pé na estrada. O primeiro livro sobre o tema, “Onde Está Meu Filho”, escrito por um grupo de cinco jornalistas reunidos por Chico de Assis (Paz e Terra, 1985), relata a visita que lhes serviria de testemunho contra as evasivas do Estado sobre o desaparecimento de ambos.
Ao chegarem ao Doi-Codi, um oficial que se apresentou como “Marechal” confirmou a presença de ambos e pediu que voltassem no domingo, dia de visita. Deixaram sacolas com roupas e alimentos. Ao voltarem, na expectativa de que veriam seus filhos, foram informadas de que tinha havido um equívoco, e lhes devolveram as sacolas.
Dona Elzita resolveu, então, procurar um marechal de verdade para ajudá-la. No dia 21 de maio, escreveu a Juarez Távora, integrante da Coluna Prestes e da Revolução de 1930. Apelava para que fizesse chegar a carta ao general Golbery do Couto e Silva. O velho marechal a entregaria nas mãos do chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel.
Como não houvesse providências, nova carta lhe foi dirigida renovando o apelo com menção a seu irmão, Joaquim Távora, oficial do Exército que aderiu ao Levante do Forte de Copacabana e, depois de desertar do Exército, acabaria morto na revolta paulista de 1924. Desta vez, o marechal a encaminharia ao comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, que reagiria com ameaças à família Santa Cruz. O mesmo Exército acrescentaria meses depois ao seu legado “civilizado e respeitador da dignidade humana” a morte de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.
Dona Elzita decidira apelar ao II Exército (São Paulo) depois de ver esgotadas suas tentativas junto ao comandante do I Exército (Rio). A carta ao general Reinaldo Melo de Almeida também ficaria para a história da luta das mães de desaparecidos: “Fui motivada a fazer a presente carta, tendo em vista os predicados cristãos e humanistas de V. Exca., herdados de seu pai, figura ímpar, que enaltece a literatura nordestina. Em discurso pronunciado por José Américo ao retornar à Paraíba, em tempos idos, afirmou: ‘Voltar é renascer. Ninguém se perde no caminho de volta'”.
Os predicados do general haviam ficado pelo caminho. Ao responder à dona Elzita, o comandante do I Exército lavou as mãos: “Seu filho, procurado pelos órgãos de segurança por estar implicado em atividades subversivas, não se encontra preso em nenhuma organização militar subordinada a este comando”.
Dona Elzita vendeu joias para percorrer o Brasil em busca do filho. Não se limitava aos poderosos. Um dia resolveu falar do filho numa fila do INSS e se deu conta de que a sociedade havia assistido à escalada do arbítrio, bestificada. “Ah, mas não é possível”, lhe diziam. “É possível, sim”, respondia, indignada.
A “velha Zita”, como lhe chamava Fernando, chamava os militares da ditadura de “monstros que matavam jovens idealistas”. Resumia numa frase o orgulho do filho – “Nunca traiu nenhum companheiro” – e confortava a angústia dos amigos de Fernando.
Numa carta, Doralina, a amiga com quem Fernando e Collier se encontrariam quando foram pegos, escreveu: “Bem sei que Fernando deu a vida também por mim, pois ele sabia como encontrar-me (…) Posso não ser digna desse gesto, mas outros amigos que ele preservou na repressão o são. Doralina daria o nome de Fernando a seu filho. São esses os amigos que o presidente Jair Bolsonaro, em “live” na cadeira do barbeiro, disse terem assassinado o filho de dona Elzita.