Pedido é a isca jogada por Bolsonaro para se vitimizar e unir militares em sua defesa
O presidente da República participou de uma manifestação que tinha por objetivo subverter a ordem política, infração que o enquadra tanto na Lei de Segurança Nacional quanto na Lei do Impeachment. Ao fazê-lo diante de um quartel, além de incitar militares à desobediência, preceito que também o enquadra nesta lei, infringiu a norma que submete atividades no perímetro de 1.320 metros dos quartéis militares à autorização se seus comandos.
Sozinha, a manifestação de domingo já dá motivos de sobra para juristas redigirem empolados pedidos de impeachment. Somado ao estímulo do presidente a que as pessoas quebrem o isolamento social, colocando em risco o direito coletivo e individual à saúde, tem-se aí abundantes argumentos para o afastamento do presidente do cargo. É um prato cheio de iscas.
O PT já fisgou a primeira ao aprovar o mote #forabolsonaro. Ao fazê-lo, o partido reverte decisão tomada dias atrás e torna-se a primeira grande legenda a cair na armadilha que o presidente montou para se apresentar como vítima de uma conspiração. Foi seguido pelo PDT, que briga pela hegemonia dos escombros da oposição.
O comando de caça aos esquerdistas continua vivo no bolsonarismo, ainda que roto e amarelado. No poder, o presidente da República ganhou novas bandeiras. Quer reviver o espírito antipolítica que move tanto as Forças Armadas quanto a classe média urbana desde o tenentismo e foi, em grande parte, responsável por sua eleição.
Para isso, gostaria de fisgar a Câmara dos Deputados e, se der, até o Supremo Tribunal Federal. Um inimigo comum com os militares é um cobiçado objeto de desejo do bolsonarismo e mesmo entre os militares mais abespinhados com o ato de domingo, encontra-se convergência com o discurso de que não o deixam governar. Ter evidências de que Rodrigo Maia estaria envolvido numa articulação para derrubá-lo é tudo que o presidente precisa para unificar, em sua defesa, militares da reserva e da ativa, em grande parte divididos em relação aos limites de sua provocação.
A ferida do domingo ainda está aberta. O acerto feito entre o comandante do Exército, Edson Pujol, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva era o de que o primeiro cuidaria das tropas e o segundo, da política. A geração que hoje ocupa cargos de comando nas Forças Armadas ainda se ressente por pagar o preço de um golpe do qual não participou. Por isso, a Pujol caberia manter as tropas longe da política e a Azevedo, tomar conta para que o capitão, além de militarizar o Palácio do Planalto, não se arvorasse a politizar os quartéis.
Faz tempo que esse acerto foi destroçado, se é que, algum dia, chegou a ter validade. No dia seguinte ao ato de domingo, quando o comandante do Exército não foi capaz de mandar sua tropa enxotar quem fazia do perímetro militar um palanque antes da chegada do comandante supremo, Bolsonaro encenou, mais uma vez, o papel de capitão tutelado. E debochado. Ao proclamar que ele era a Constituição, porém, gozou, mais uma vez, de seus bedéis.
Foi assim que o ministro da Defesa foi levado a emitir a nota na qual diz que as Forças Armadas só têm um aliado, a Constituição e, no momento, um inimigo, o coronavírus. Parece pouco, mas seus redatores viram ali o limite até onde um subordinado pode ir.
Os militares parecem se manter silentes frente a um governante que namora à luz do dia com o golpismo porque a alternativa os expõe ainda mais. O que seria um governo Hamilton Mourão senão a farda, sem disfarces, no poder? Por isso, desencadearam a operação panos-quentes. Buscaram interlocutores para mediar a relação com o Congresso. O apelo foi o de que era preciso pacificar para o capitão não radicalizar. Seria preciso aceitar um presidente que estupra mas não mata a Constituição.
De pelo menos um interlocutor ouviram que de nada adiantaria se vestir de bombeiro se o presidente- incendiário permanecia incontido. Bolsonaro voltou o gabinete do ódio contra o projeto aprovado na Câmara de ajuda a Estados e municípios. Considera-o pauta bomba, tanto pelo rombo nas finanças públicas quanto pelo benefício a seus adversários.
Mas isso não justifica que saia proclamando apoio a um ato pela prisão do presidente da Câmara. O segundo mandato de Dilma Rousseff não teria chegado a abril de 2016 se ela tivesse ido à rua protestar contra a patifaria de Eduardo Cunha, das pautas bomba e de todas as emendas impositivas aprovadas durante a agonia de seu mandato. Bolsonaro prova do mesmo veneno que vitaminou sua ascensão. E sinaliza que vai dar continuidade ao banquete.
Para isolar o presidente da Câmara, oferece aperitivos ao Centrão. Vai distribuir os de sempre, Funasa, FNDE, Codevasf, sabendo que vão pedir de entrada as agências reguladoras e, de prato principal, a presidência da Câmara. Como tanto o Executivo quanto parte do Centrão querem se ver livre de Maia, tudo parece convergir para o bem da nação. Só que não.
As lideranças que negociam com Bolsonaro são as mesmas que, em 2016, almoçavam com Dilma e, no mesmo dia, jantavam com Michel Temer. Vão sair correndo do porão antes de o barco começar adernar.
Furos não vão faltar. Paulo Guedes perdeu a aula que ensinava a gastar. Vai ficar ainda mais perdido num governo não vai conseguir se desvencilhar dos auxílios que começou a pagar. Se no Sudeste, os R$ 600 não refrescam o motorista do Uber, no Nordeste já bombou a venda de ovos. O pessoal que tomou conta do governo sabe abrir para-quedas melhor do que fechar contas.
Some-se a isso os dois inquéritos que tramitam no Supremo, fake news e ato antidemocrático, nas mãos do mesmo relator, Alexandre de Moraes. Como poderá compartilhar provas entre um e outro processo, a busca pelo nome e sobrenome do personagem por trás de ambos estará facilitada.
Por isso, o pedido de impeachment é contraproducente. E arrisca a antagonizar a oposição com a maioria que, se não aprova Bolsonaro, tampouco quer tirar o foco do principal, que é a pandemia. As cordas estão aí. O capitão que não consegue colocar uma máscara de proteção ainda está por se mostrar capaz de tirar o novelo que ele mesmo enrola no pescoço. Num país que está na UTI, quem se apresentar para puxá-lo vai passar por carrasco.