Ao promoverem a desigualdade na vacinação, empresários adubam o populismo bolsonarista de 2022
O presidente Jair Bolsonaro parecia o único, nos dois lados da tela, a saber onde aquela conversa ia parar. Ele havia sido convidado para pontificar numa conferência do Crédit Suisse e anunciava ali a permissão do governo para a importação, por empresários, de vacina contra a covid-19 quando foi aparteado pelo ministro da Economia. “Para cada funcionário vacinado a empresa tem que entregar uma vacina para o SUS. Não é fura-fila. É uma volta segura ao trabalho. E quem está desempregado, como fica? Vai pegar as doses que forem para o SUS. É evidente que isso é muito bom”, explicou Paulo Guedes.
Participavam do encontro, por videoconferência, além de Bolsonaro e Guedes, o chanceler Ernesto Araújo e o presidente do Banco Central. Roberto Campos Neto se mantinha fora da tela, mas foi a ele que Guedes dirigiu suas últimas palavras: “É o melhor presidente de Banco Central do mundo. Deram uma flauta pra ele e ele tocou a flauta direitinho”. Nessa hora, Bolsonaro olhou para Campos Neto e começou a rir alto: “Robertão e essa flauta aí?”. Paulo Guedes, tentando evitar o duplo sentido da reação de mau gosto do presidente, atalhou: “Flauta no sentido poético”.
O constrangimento provocado por Bolsonaro naquela plateia é apenas o aperitivo daqueles que empresários e investidores enfrentarão com a armadilha da ingerência privada na vacinação. É um movimento que cai como uma luva para os propósitos presidenciais. A importação da vacina, seja pelas dezenas de empresários reunidos pela Coalizão Indústria, seja por clínicas privadas, aprofunda a divisão do país em castas. E não apenas porque um dos fornecedores seja uma indústria indiana. Alargar as desigualdades com a vacinação é prato cheio para o discurso populista que Bolsonaro quer calibrar para 2022.
Não é outra a razão pela qual Bolsonaro diz que não se vacinará. Estará ao lado daqueles que não o farão por medo e dos milhões de desempregados e precarizados de toda ordem que, no melhor das hipóteses, vão atravessar o ano de 2021 sem a picada. Ao contrário do que diz Paulo Guedes, ainda que o SUS receba metade do lote a ser importado pelos empresários, a vacinação obedece a um plano nacional que, acertadamente, remete a quase totalidade da população economicamente ativa para o fim da fila, ou seja para o ano da sucessão presidencial.
O presidente não precisará apenas da vacinação paralela para alimentar seu discurso. Terá ainda que estender o auxílio emergencial a perder de vista sem os cortes de gastos públicos propagandeados, no evento, pelo ministro da Economia. É preciso ter muita fé na cloroquina para acreditar que um governo comandado por um presidente como Bolsonaro, em campanha pela reeleição, e um Congresso nas mãos do Centrão enfrentarão os vícios do gasto público. Um ambiente de expectativas deterioradas, privilégios e castas intocadas é o terreno fértil para a reedição do nós x eles. A fila paralela da vacina é o adubo desta colheita.
O gesto dos empresários agride a mobilização de seus pares que, ao longo de 2020, se juntaram para doar ventiladores, equipamentos de proteção individual e cestas básicas, alugar aviões para transportá-los e reformar hospitais. Nada disso foi feito em detrimento do SUS, muito pelo contrário. Na vacinação, porém, a régua e o compasso são do Sistema Único de Saúde. E não lhe faltam os meios. No limite, um ministro mais competente. Se a intenção é ajudar, por que não se compram congeladores para a vacina da Pfizer, rejeitada pelo governo brasileiro sob a alegação de que falta estrutura de armazenamento adequada? A iniciativa privada, como em toda campanha de vacinação, só entra quando os estoques do governo estão garantidos. Quando se diz que Bolsonaro piora o Brasil é porque, certamente, não se trata da obra de um só homem.
Tome-se, por exemplo, o que acontece nos Estados Unidos. Seria de se esperar que, num país que não tem um sistema público de saúde como o brasileiro, a compra de vacinas pelas empresas estivesse acelerada. Só que não. Grandes conglomerados, inquietos com a lentidão do ritmo de vacinação, ofereceram suporte aos esforços dos governos federal e estaduais sem pretender substituí-los. A Amazon e a Honeywell ofereceram tecnologia para melhorar a administração dos cadastros, o transporte das vacinas e as filas, a Starbucks disponibilizou suas unidades para dar maior capilaridade à vacinação, o Bank of America chegou a oferecer um estádio de futebol para o mesmo fim e a Sodexho mobilizou seus gerentes para identificar e reverter a indisposição de seus funcionários ao imunizante. Tudo isso no suporte e não em concorrência com o setor público.
É bem verdade que esse esforço tem sido facilitado pela troca de comando na Casa Branca. E aqui, se aventuras como esta fila paralela prosseguirem, não vai ter troca nenhuma. Ou melhor, poderá tomar posse um Bolsonaro II a dizer que sua autocracia foi respaldada pelas urnas. A radicalização do discurso presidencial com vistas a 2022 ainda pode vitimar o herói da história, o SUS. No mesmo evento em que Bolsonaro e Guedes pontificaram com o apoio à fila paralela, o ministro disse que aceitaria a extensão do auxílio emergencial do qual o chefe tanto precisa, desde que possa conter gastos com educação e saúde. E não é congelar no patamar do Orçamento de Guerra, mas naquele vigente antes da pandemia para enfrentar uma situação de demanda reprimida de outras doenças no SUS além das sequelas decorrentes da Covid-19.
Se o SUS é um tema com o qual esta mobilização empresarial tem pouca familiaridade, a Lei das SA talvez não o seja. Lá está que o acionista não pode ter privilégio numa empresa, como creem aqueles que querem se valer da participação da Blackrock na AstraZeneca para adquirir uma parte do lote de vacinas ao qual a gestora, supostamente, teria direito. O princípio é copiado da legislação americana. Na carta anual aos acionistas, que acaba de divulgar, Larry Fink, CEO da Blackrock, radicalizou seu compromisso com a agenda ESG (ambiental, social e de governança), por um capitalismo “mais inclusivo”. Das duas uma: trata-se de jogada marketing de um gestor que tem sob sua responsabilidade U$ 9 trilhões em ativos ou o Brasil está, de novo, com ideias fora do lugar.