Ignorância, indigência, falta de esgoto, saúde precária e violência nunca foram estímulos para o desenvolvimento
O pacote de três PECs – proposta de emenda constitucional – encaminhado pelo governo na semana passada ao Congresso suscitou reações antagônicas entre os economistas brasileiros. Festejadas pelos analistas do mercado financeiro, as propostas foram recebidas com ressalvas, e até mesmo com algumas sérias críticas, por economistas do meio acadêmico ou vinculados a instituições de pesquisa.
O ponto de discórdia não está no objetivo maior de promover o ajuste nas contas do setor público, pois, quanto a isto, estão todos de acordo, mas no método de passar uma régua de forma linear nas despesas, independentemente do caráter que tenham e das consequências para o país no médio e longo prazos. Ou seja, questiona-se a visão do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que a função do governo é a de equilibrar receitas com despesas, sem considerar a qualidade das despesas sacrificadas.
Cortar gastos com pessoal de uma administração direta inchada e custosa não é o mesmo que comprometer despesas com serviços fundamentais para o desenvolvimento do país como educação, saúde e segurança. A finalidade maior dos recursos captados na forma de impostos não se restringe à sustentação da máquina do setor público pura e simplesmente. Afinal, o governo não existe para proveito próprio.
Nessa linha, fazem sentido as medidas contidas nas PECs destinadas a abater o tamanho do governo, como a redução de 25% da jornada de trabalho dos servidores públicos, com a concomitante queda equivalente de salário, sempre que as despesas ultrapassarem 95% das receitas, situação caracterizada como de emergência.
Também são defensáveis as intenções de acabar com o aval da União nos empréstimos tomados por Estados e municípios, além da extinção dos municípios com menos de cinco mil habitantes, cuja arrecadação própria não alcance 10% das despesas.
Não se sabe se as propostas serão exequíveis. O corte de 25% do salário do servidor público em consonância com a redução da jornada de trabalho tem potencial para se transformar em uma ruidosa mobilização do funcionalismo contra o governo. Não é um ponto de fácil tramitação no Congresso, ainda mais no escopo de uma mudança constitucional.
A extinção de municípios também é tema sujeito a pressões políticas, sem falar no desaparecimento do aval da União para Estados e municípios. Quanto a este último, seria preciso que viesse acompanhado de uma profunda reforma federativa e tributária. Sem isso, não se vislumbra como funcionaria na prática, em especial na esfera estadual, cujo principal imposto, o ICMS, está intimamente atrelado ao comportamento da atividade econômica. Uma alternativa seria ampliar a “autonomia” dos Estados para que criem livremente seus próprios impostos, mas certamente isso não agradaria à União.
Há aspectos que ainda não estão claros, como a revisão da isenção de impostos a determinados segmentos. Em tese, pode englobar desde títulos privados de renda fixa negociados no mercado financeiro como o imposto de renda sobre a aposentadoria de doentes terminais com câncer, Aids, Parkinson, entre outras. Também não se sabe ainda que fundos o governo vai extinguir para alocar os recursos na dedução da dívida pública.
A mais polêmica de todas é a proposta que flexibiliza os gastos com educação e saúde para a União e para os Estados, de modo a que os recursos sejam distribuídos mais livremente. Os Estados poderiam aplicar naqueles dois setores, a seu critério, os 25% e os 12% do orçamento hoje obrigatoriamente destinados à educação e à saúde, respectivamente. Isso abre uma grande brecha para que a educação pública brasileira, que já é ruim, fique ainda pior.
Todos sabem que o ministro Guedes é um neoliberal autêntico, convicto de que os pobres consomem todos os recursos que recebem por não saberem poupar. No entanto, se tivesse tempo para ler o estudo “Síntese de Indicadores Sociais – uma análise das condições de vida da população brasileira – 2019”, divulgado este ano pelo IBGE, órgão subordinado ao seu ministério, o ministro depararia com uma realidade incontestável.
Em 2018, 25,3% da população brasileira vivia com rendimentos inferiores a US$ 5,50 PPC (paridade do poder de compra), aproximadamente R$ 420 mensais, ou cerca de 44% do salário mínimo então vigente. Abrange um universo de cerca de 53 milhões de pessoas, um potencial enorme de gente para a ampliação do mercado e da renda no país. O IBGE também apurou que 6,5% da população recebeu no ano passado rendimento inferior à linha de US$ 1,90 PPC por dia, usada como corte para a definição de pobreza. Equivale a 13,5 milhões de pessoas, superior à população da Bélgica, Grécia e Portugal.
Apesar de ainda ser visto com preconceito, além de sujeito a opiniões sectárias de quem insiste em confundir alhos com bugalhos, o tema da distribuição de renda há muito deixou de limitar-se aos discursos das esquerdas e das igrejas para ganhar os bancos acadêmicos. É apontado hoje como um dos principais motivos do atraso econômico pelo fato objetivo de inviabilizar o aumento da produtividade no país, como destacou Edmar Bacha na conferência da Academia Brasileira de Letras sobre “O que falta ao Brasil?”, em agosto deste ano.
Também o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, tem se dedicado à análise da questão. “O combate à desigualdade é mais do que um imperativo moral – é condição necessária para a construção e execução de uma agenda de crescimento sustentável e inclusivo”, diz ele no paper “Estado, desigualdade e crescimento”, rechaçando os erros de 1960 e 1970, quando se defendia crescer primeiro para depois distribuir. Para enfatizar a importância da distribuição de renda, Armínio destaca no texto que há 60 anos o PIB per capita brasileiro não cresce em comparação com o dos Estados Unidos, “tendo caído nos últimos 40 anos”. Para ele, uma resposta eficaz ao quadro de estagnação desigual “passa obrigatoriamente por aumento dos investimentos públicos nas grandes áreas sociais: educação, saúde, infraestrutura, saneamento, transportes, segurança e meio ambiente”.
Ignorância, indigência, falta de esgoto, saúde precária e violência nunca foram estímulos para o desenvolvimento, em nenhuma parte do mundo.