Ferreira Gullar, no grandioso Poema Sujo, pensando sobre as várias velocidades e tempos pelos quais as existências se desenrolam afirmou que “variados são os modos como uma coisa está em outra.”. Hoje, Gullar não está mais na cidade, não caminha mais pelas quitandas, nem observa as bananas que apodrecem como a própria vida. Todavia, Gullar permanece em nós, uma voz firme como um relâmpago capaz de gerar os espantos necessários à criação.
No escuro desses tempos difíceis, a voz de Gullar continua ressoando como um alerta contra as simplificações e os dogmatismos. Sua última crônica, publicada hoje na Folha de São Paulo o demonstra, revelando o homem que aprendeu, a partir dos traumas e das derrotas, a falência da revolução e do socialismo, mas que manteve, inabalável, a perspectiva da construção de uma sociedade mais igualitária e justa.
Sua trajetória, a qual acompanhei durante alguns anos como objeto de pesquisa, acompanha as grandes transformações e angústias do século XX e início do XXI. Em todos os momentos, Gullar esteve disposto a se lançar ao debate público, seja com sua poesia ou suas intervenções políticas.
Nos anos 1950, recém chegado ao Rio, se engaja nas vanguardas artísticas, fazendo parte dos movimentos concretista e neoconcretista. Na breve e profunda mudança para Brasília no início dos anos 1960 percebe que as vanguardas o levaram ao silêncio e no contato com os trabalhadores candangos preenche o silêncio com a política. Assume a presidência do CPC e, no dia do golpe de 1964, filia-se ao Partidão.
Sempre contrário a via armada para a derrubada do regime militar, Gullar se contrapôs aos militares no terreno em que eram mais fracos, a política. Apesar disso, terminou clandestino e exilado no início dos anos 1970.
No exílio, experimenta o autoritarismo dos comunistas da URSS e dos militares chilenos e argentinos. Na busca pela sobrevivência, imerso em sua própria trajetória, compõe em Buenos Aires sua maior obra, o Poema Sujo. O poema emociona a todos e chega ao Brasil como uma ausência, em uma fita cassete com a voz do poeta, que retorna somente alguns anos mais tarde.
No contato com o autoritarismo e a derrota de Allende, Gullar percebe os problemas da esquerda revolucionária e afirma não estar mais disposto a conciliar com os radicalismos tolos. Nos anos 1980, em um poema em homenagem aos 60 anos do PCB, acerta as contas com a cultura política pecebista, mantendo em si aquilo de mais essencial, a vontade de justiça e a necessidade da política.
Mesmo fora da política partidária, Gullar nunca abandona a política. Prossegue intervindo no debate político nacional, apontando desde o início os problemas do petismo e mantendo-se firma na defesa da democracia e do espírito republicano, pensando a necessidade da transformações da sociedade brasileira a partir de uma chave reformista.
Assim, o que fica em nós de Gullar, além, é claro, da sensibilidade incrível de sua poesia, que certamente será ressaltada por muitos, a figura de um homem que sempre combateu pela igualdade, por aquela vida banal que descreveu milimetricamente em seus versos.
Em muitos poemas, Gullar abordou a morte e suas relações com o tempo dos vivos. Escrevendo sobre a morte de Clarice Lispector, Gullar observou as pedras e pensou que existiam independentes e exteriores à morte da amiga. Todavia, feitos de carne, continuamos a existir, numa tarde de dezembro, carregando os maxilares de nossos mortos, como naquela poema de Drummond que Gullar sempre citava. O corpo de José Ribamar Ferreira morreu, Ferreira Gullar certamente está presente.
* Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é Historiador, mestre em História na Unesp/Franca e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História e Cultura