Existe atualmente no ambiente do nosso país um visível mal estar. É inacreditável. Em meio a uma violenta pandemia e tendo pela frente uma das maiores recessões de nossa história, ver nas ruas e nas redes sociais pessoas agressivamente pedindo um novo AI-5, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal – guardião da Constituição, em outros termos, o fim da democracia. Percebo em conversas com amigos, familiares, conhecidos, um sentimento misto de temor, apreensão, incredulidade, indignação e surpresa com os rumos políticos de nosso Brasil. Eu, que como vereador coordenei a campanha das diretas na minha cidade, em 1984, jamais imaginei que parcela significava da população viesse a se mobilizar algum dia defendendo um retrocesso catastrófico. Afinal até o samba enredo da Imperatriz Leopoldinense clamava: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”.
Minha geração, que na metade dos anos setenta, tentou reencontrar o fio da meada histórico da geração de 1968, abraçou com vigor, determinação e coragem a agenda democrática – anistia ampla e geral, eleições diretas para Presidente e todos os demais cargos e Constituinte livre e soberana. A utopia que movia nossa generosa militância era ver um país mais justo e democrático.
Descobrimos e experimentamos o autoritarismo nos livros e na vida real. Quantos foram os encontros visando à reconstrução da UNE e das UEEs reprimidos? Comecei a acordar para a longa e tenebrosa noite do autoritarismo vivida pelo país aos 16 anos, em 1976. Estudava na Academia de Comércio de Juiz de Fora e liderei um dia de greve e uma passeata no recreio do turno da manhã. As razões eram afetivas e administrativas, nada de conteúdo político e ideológico. No dia seguinte, fui informado que seria enquadrado no Decreto-Lei 477, de 26 de Fevereiro de 1969, que definia infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dava outras providências. Aí descobri que havia fortes restrições à liberdade de opinião, organização e mobilização e que poderia ser expulso do colégio e sofrer outras penalizações. Foi aí que despertei para a imperiosa e inescapável participação no movimento pela redemocratização do país.
Mais à frente, em 1979, já como coordenador do Diretório Acadêmico de Economia da UFJF e membro da direção do Comitê Brasileiro da Anistia local, fomos vários de nós julgados com base na Lei de Segurança Nacional por “crime de opinião”. Defenderam-nos o ex-presidente da OAB/JF, Winston Jones Paiva, e o ícone do direito brasileiro, Heleno Fragoso. Toda a cidade acompanhou o julgamento. Foi um fato histórico que anunciava o esgotamento do autoritarismo. Tinha 18 anos, mas parecia ter muito menos. Só não gostei de uma passagem quando o grande jurista Heleno Fragoso, que me tinha à sua esquerda no púlpito, virou-se para a junta militar e argumentou: “Olhem este rapaz aqui, quase uma criança, ele pode arranhar a segurança nacional?”. A plateia toda caiu na gargalhada. Quase levantei, pedi um aparte e disse: “Me desculpe, mas o Senhor não me conhece bem, sou perigoso pra caramba”.
Em 1981, já como presidente do DCE da UFJF, convocamos uma manifestação contra a divisão do vestibular. Foram mais de mil jovens que cursavam o pré-vestibular, quase todos menores. Portanto, a responsabilidade era totalmente minha. Na véspera, fui chamado pelo Delegado Regional de Segurança, uma pessoa doce e amigo de minha família, que transmitiu o recado: “Se houver passeata, haverá repressão”. Nosso precário e juvenil sistema de inteligência detectou que havia dois caminhões com a tropa de choque postada na Avenida Rio Branco e na Rua Santo Antônio. Ou seja, se saíssemos dos jardins da reitoria em passeata, o pau ia quebrar. Logo ao final do encontro, de cima de um caixotinho e com megafone na mão, dispersei organizadamente a turma, sob os protestos veementes de duas militantes trotskistas, vindas de Volta Redonda, que tentavam tirar o megafone de minha mão para propor a passeata, aos gritos de: ”stalinista, stalinista”.
Memórias, memórias. Apenas para registrar que os meus verdes anos e de minha geração foram voltados integramente à luta pela democracia e pela liberdade. Daí nossa surpresa e indignação com as atuais e inconstitucionais manifestações pedindo o retorno aos tempos sombrios da ditadura.
Steven Lewitsky e Daniel Ziblatt em seu best-seller “Como as democracias morrem” advertem que os governos autoritários podem nascer de rupturas como no Chile de Pinochet, no Brasil em 1964 ou na Cuba de Fidel. Mas podem nascer pela deterioração institucional de governos democraticamente eleitos. Discutem com profundidade experiências históricas assim, à direita e à esquerda, como Fujimori no Peru, Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Chávez na Venezuela, Trump nos EUA, Putin na Rússia, Daniel Ortega na Nicarágua, entre outros. Demonstram que não bastam Constituições e instituições democráticas. Há que se enraizar a cultura democrática em normas não escritas: “a tolerância mútua, ou o entendimento de que as partes concorrentes se aceitam umas às outras como rivais legítimas, e a contenção, ou a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prerrogativas institucionais”. O Brasil caminha perigosamente na direção contrária.
A Constituição brasileira de 1988, que ancora nossa democracia, é fruto de um processo amplamente democrático e participativo. Não é perfeita, é prolixa e detalhista, mostra disso é que ela própria previu sua revisão e as inúmeras emendas constitucionais aprovados em curto espaço de tempo. Mas ela é a bússola e a base da nossa democracia, que está acima de todos, absolutamente de todos. Vale relembrar o antológico, excepcional e denso discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, feito no plenário do Congresso Nacional, na promulgação da nova Carta Magna: “A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo”. “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afronta-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério”. “A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”. Os atuais manifestantes a favor do retrocesso deveriam ter a humildade de ouvir este marcante discurso, momento maior de nossa vida política recente.
Não basta a Constituição. Não basta a necessidade de difundir e enraizar a cultura democrática. Faz-se necessária a existência de Poderes independentes e soberanos e de instituições permanentes de Estado, que garantam o efetivo cumprimento dos mandamentos constitucionais. O Congresso, o Poder Judiciário, as Forças Armadas, o Ministério Público, a Polícia Federal, a imprensa livre, são patrimônio da sociedade e organizações de Estado, que geram os famosos freios e contrapesos, e são absolutamente indispensáveis para a democracia. Quantas cabeças confusas e atormentadas no Brasil de hoje confundem esses conceitos e ideias basilares para a vida democrática e para a preservação da liberdade. A Polícia Federal Brasileira é uma instituição de Estado, não está a serviço de governos, seja qual for, não é a Gestapo nazista, nem o KGB soviético, não é uma polícia política. Assim também as Forças Armadas. Em boa hora o atual Ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva, em sua Nota oficial de 04 de maio último, pontuou com firmeza: “As Forças Armadas cumprem sua missão constitucional. Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do País. A liberdade de expressão é requisito fundamental de um País democrático… As Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade. Este é o nosso compromisso”.
Minha geração que lutou pela redemocratização cometia erros, sem dúvida, mas tinha clareza de valores, objetivos e convicções para tomar as ruas e praças e defender ideias. Não sei os manifestantes de agora em favor do retrocesso e do AI-5 se têm alguma clareza de qualquer coisa. Deveriam ler “Como as democracias morrem”, o discurso de Ulysses e a nota oficial do General Azevedo e Silva. Uma boa causa não pode nascer de poucas palavras no Twitter ou algumas linhas de Whastapp.
O momento é sombrio. É preciso a eterna vigilância em defesa da liberdade. A perplexidade, a indignação e o medo despertados pelas faixas nas ruas pedindo a volta do autoritarismo não podem derrotar a esperança e a fé na democracia. Não podemos nos entregar. A história dá muitas voltas, mas não abriremos mão da democracia como valor permanente e universal.