Marcus Fabiano: Pequena nota sobre o lulismo cenobita

O lulismo opera como subproduto ideológico de um comportamento religioso disfarçado de opção secular. Amplificado por aparelhos de mídia originários exatamente da rede de corrupção que condenou na Justiça o seu luminar, ele serve-se dos mesmos estratagemas fundamentalistas que propelem um Bolsonaro ou um Edir Macedo, este último a quem aliás Lula apoiou e por quem se fez apoiar.
Foto: Reprodução
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O lulismo opera como subproduto ideológico de um comportamento religioso disfarçado de opção secular. Amplificado por aparelhos de mídia originários exatamente da rede de corrupção que condenou na Justiça o seu luminar, ele serve-se dos mesmos estratagemas fundamentalistas que propelem um Bolsonaro ou um Edir Macedo, este último a quem aliás Lula apoiou e por quem se fez apoiar. A sua fórmula é simples, embora eficacíssima perante uma cidadania de pouca instrução: arrebatamento pelo carisma, concentrada mistificação do líder (inclusive por falsos martírios) e fechamento congregacional em espaços de culto, celebração e confirmação da fé. Porém, desde o divórcio entre o PT e as massas, ocorrido em 2013, quando as pessoas deixaram de comparecer a tais eventos, importava substituí-las por novas tecnologias da multiplicação virtual dos “corpos crentes”, tais como as redes digitais de fake news (máquinas de mídia publicitária mal disfarçadas de pseudojornalismo alternativo), com suas fotos de drones e suas martelações mitômanas sobre “a condenação injusta” ou o vil estardalhaço a respeito de frases jamais proferidas como a “não temos provas, mas temos convicção”, atribuída ao Ministério Público Federal.

Que esses e outros embustes sobre perseguições e milagres econômicos alcancem a boa fé de alguns desinformados, é plenamente explicável e até esperado, dado o baixíssimo grau da discernimento de uma sociedade cujo colapso da educação pública se faz acompanhar por catástrofes na saúde, na previdência, na geração de empregos, no transporte, na infraestrutura, na segurança pública e na qualidade geral de vida, sobretudo dos mais pobres – e isso muitíssimo antes da presidência de Temer – o que é ridículo mas necessário (re)lembrar.

Importa-me aqui, entretanto, um outro fenômeno: que tais surtos místico-carismático sejam capazes de devorar o discernimento e a honestidade mais pedrestres dos espaços laicos da vida intelectual e cultural, a suposta (e desmentida) fileira de vanguarda crítica depositária de uma esperada autonomia do pensamento secular. A covardia e o fisiologismo associativo dos intelectuais, do direito à economia, passando pelas letras e as ciências sociais, tornou-se um objeto de pesquisa que deverá ocupar a pauta crítica dos próximos anos.

Dos “especialistas em mídia” aos acadêmicos universitários e operadores da cultura (muitos engajados na defesa de seus cargos de confiança), acumulamos uma constrangedora fusão entre clientes e simpatizantes de elite e camadas médias, atores sociais cujas relações e interesses precisam ser minuciosamente mapeados em suas redes, descritos em suas lógicas práticas e compreendidos por trás (e por baixo) de um comportamento de seita orientado por um ideal jusnaturalista de “bem” capaz de retroceder para antes da modernidade jurídico-política que caracteriza o Ocidente. Muitas vezes sem absolutamente nenhuma trajetória de militância política significativa (estudantil, sindical, comunitária, partidária, administrativa ou mesmo ativismo identitário) aparecem artistas abusando do prestígio de suas projeções e procurando ocupar o “lugar de fala”, por exemplo, dos “constitucionalistas”, enquanto estes, em modo reverencial, prostram-se maravilhados diante das aparições do seu repentino líder. Esse “efeito manada” é, no mínimo, constrangedor. E qualquer olhar nesse espelho negro só nos devolve a vertigem gerada pelo tamanho do fosso que nos (es)traga.

Há dias, o professor de uma importante Universidade estrangeira, acompanhado por inúmeros colegas brasileiros, lamentava o aparente rapto emocionalista de nossos intelectuais. O diagnóstico foi unânime e identificou um círculo de recrutamento direcionado especificamente a reproduzir certa cadeia retroalimentar de uma dissonância cognitiva: a de que teríamos sofrido um “golpe de Estado”. Nesse preciso contexto, flagramos a mais cretina instrumentalização da análise marxista do direito penal dos anos 1970 sobre a “seletividade” dos pobres, do minimalismo ao abolicionismo penal (tema que também já tratei aqui: https://goo.gl/mVFtrG). Tal abordagem, apoiada por abusos de autoridades acadêmicas em contextos de péssima formação e nova recidiva bacharelista, acabaria por “denunciar” a Operação Lava Jato e defender as máfias cleptopolíticas como grupos de pobres cidadãos “perseguidos” (Cunha, Cabral, Geddel, Dirceu, Vaccari, Cerveró, entre outras “vítimas”). Passando-se do direito penal ao constitucional, isso tudo culminaria ainda no rumor sobre um suposto “golpe de Estado” – alegado evento que, domesticamente, merece até cursos nas universidades públicas enquanto, no plano internacional, foi sobejamente ignorado como mero truque de propaganda corporativa, tanto pela ONU como por absolutamente TODOS os países democráticos do mundo (na aportunidade, escrevi esse ensaio: https://goo.gl/hFjvw6).

Para o pensamento mais atilado, a aparência exterior disso tudo é a de uma epidemia de retardamento mental. Mas a sua causa mais concreta encontra-se na voracidade das elites corruptas avançando sobre os despojos do pensamento e da cultura (transformada em plataforma paga) para se perpetuarem no lugar privilegiado de quem “produz” um ideário e um entretenimento inócuos e atrelados por opção explícita ao salvacionismo personalista e seu rendoso aparato midiático. E é bem aí que se fecha um círculo maldito, formado pela alimentação entre o prestígio social e o ganho econômico. Ademais, das fraudes nos concursos à opção deliberada pela torrencial redundância do produtivismo acadêmico, mergulhada em uma crise sem precedentes, a sociedade brasileira não pôde sequer contar com a Universidade que tanto lhe custa. E tudo já indica que ainda seguiremos pagando um preço altíssimo por isso.

Mas gostaria de recordar uma outra experiência, anterior mesmo à minha vida universitária. Certa vez, quando dirigente estudantil da União da Juventude Comunista – UJC, do extinto PCB, fui escolhido para fazer uma saudação a Luís Carlos Prestes em uma conferência em Porto Alegre. Acho que eu deveria ter uns 15 ou 16 anos. Nervoso, lembro então de ter passado vários dias conversando com os militantes mais velhos do PCB, genuíno arquivo vivo de testemunhos e informações históricas em um mundo ainda sem internet. O objetivo era apenas um: apurar por que, afinal, uma liderança como Prestes havia sido afastada pelo Comitê Central do Partido (https://goo.gl/9xP8Eo). A resposta logo tornou-se-me clara: a partir dos desastres da experiência soviética, a impiedosa censura ao stalinismo e outras variantes de cultos personalistas tornaram-se centrais no processo autocrítico dos erros históricos dos comunistas democratas, assim como as ilusões e equívocos da luta armada no combate à Ditadura no Brasil (contra a qual, registre-se a bem da verdade, Prestes corretamente também se insurgia).

Prestes era baixo, calmo, concentrado e assertivo. E eu, um jerivá falante. Do tenentismo à era Vargas, da Coluna ao exílio em Moscou, subitamente via-me diante da própria encarnação da história que naquele momento falava de Constituinte e outros assuntos sobre os quais eu tinha um vago e precário entendimento. Quando ele agradeceu minhas palavras, apertou minha mão sorrindo e disse: “continue estudando, camarada!”. Aquela foi certamente uma de minhas maiores emoções políticas. Contudo, nem por isso me converti ao prestismo que então grassava entre certos grupos de esquerda, em especial do PDT de Brizola. Poucos anos depois, quando viria a encontrar Lula nas campanhas da Frente Popular e o seu irmão, frei Chico, nas reuniões do PCB de São Paulo, o exemplo de Prestes havia se tornado para mim um paradigma de crítica ao personalismo e também meu parâmetro dos altos custos da responsabilidade histórica.

Era assim que o velho PCB educava seus militantes. E essa esquerda socialista soube afastar-se de um revolucionário genuíno como Prestes por conta dos seus erros. Resta saber o que essa ex-querda de agora, vaidosa, corrupta e crente, aparelhada por uma cadeia de parasitas que se estende das empreiteiras a certos artistas e religiosos, fará com alguém como Lula, essa invenção de Golbery e do sindicalismo negocial norte-americano que conseguiu reunir ao seu redor coisas tão maravilhosas como um pseudomarxismo católico dos padres de passeata e o ideal dos guerrilheiros de Branca Leone que logo se converteram às off shores, às contas no Panamá, à fachada das empresas de consultoria e às indenizações em nome dos Direitos Humanos – aqueles mesmos dos quais jamais recordaram quando empunhavam armas em nome das doutrinas mais fascistas da esquerda mundial.

O Brasil moderno já teve um líder de esquerda genuinamente socialista e muito maior do que Lula em termos sociais e inclusive morais. E nem por isso avançou rumo a melhoras efetivas. O emocionalismo salvacionista e cleptocarismático (organizado como máquina de cooptação de uma juventude sequestrada por esquemas de propaganda imbecilizantes e cada vez mais próximos à religião) é o último estágio de uma demagogia das elites que, na ausência de projetos democráticos efetivos, luta por encarnar em personagens capazes de dissimular a oquidão de seu descompromisso estrutural. Qualquer tentativa de enfrentar tal atraso envolve uma mudança radical de rumo e mentalidade, algo que deve começar (1) pela rigorosa reabilitação do materialismo crítico, (2) pela educação primária da cidadania em um espaço igualitarista republicano e (3) pela construção disciplinada de programas coletivos realmente factíveis. Mas nada disso terá lugar enquanto os intelectuais dessa nossa massa crítica abatumada se comportarem como uma claque de crentes, muitos ensandecidos e alguns bem poucos regiamente comissionados.

* Marcus Fabiano Gonçalves (1973) é gaúcho e mora no Rio de Janeiro, onde é professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na UFF – Universidade Federal Fluminense. Em 2012 veio a público o seu segundo livro de poemas, Arame Falado, pela editora 7Letras. O autor também publica ensaios e poemas inéditos no seu blog: https://marcusfabiano.wordpress.com

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