Países acertam pacto de livre-comércio que atinge 600 milhões e um terço do PIB global
A dinâmica de desglobalização –crítica às democracias liberais, a um sistema internacional baseado em regras construídas multilateralmente e ao livre comércio– não começou com o ‘brexit’ ou a presidência de Donald Trump.
Já se podiam perceber seus movimentos no rescaldo das crises gêmeas de 2008 (subprimes) e 2011 (dívidas soberanas europeias).
Em meio às muitas disfuncionalidades da democracia, ganharam relevo autocracias como as de Rússia, China e Turquia.
O comércio multilateral sob o signo da OMC não ficou necessariamente mais justo. A ONU não se reformou, sobretudo em seu núcleo central de deliberação –o Conselho de Segurança.
Processos de cooperação regional, como Nafta, Mercosul e União Europeia, perderam velocidade e eficiência, e sua própria existência é posta em xeque.
A globalização profunda, que ganhou tração com o fim da Guerra Fria, vem sendo carcomida há pelo menos dez anos. Quando ‘brexit’ e Trump emergiram no local do acidente, muitas fraturas já se encontravam expostas. E a guerra comercial posta em marcha nas últimas semanas apenas amplia o potencial disruptivo.
Em meio a tantas nuvens escuras, que pairam especialmente sobre o comércio global, lançaram-se ontem alguns raios de luz. Japão e União Europeia assinaram nesta terça (17), em Tóquio, um importante tratado –o JEFTA, sigla em inglês para o acordo de livre comércio entre o país oriental e o bloco europeu.
Se ratificado, tal pacto abrangerá 600 milhões de pessoas que passarão a integrar o maior mercado comum do mundo, de onde se gera 1/3 do PIB global.
Há várias considerações a fazer sobre tal acontecimento. A atual onda de protecionismo precipitada pelos EUA de Trump funcionou, ao contrário do que se possa imaginar, como acelerador de tal acordo. Aliás, o mesmo pode se dizer do ‘brexit’, que acabou fornecendo um incentivo indireto a que os europeus abandonassem sua zona de inércia negociadora.
Objeto de minuciosas negociações havia quatro anos, o JEFTA tinha tudo para continuar sendo empurrado com a barriga ainda por muito tempo não fosse a pressão política em Bruxelas e Tóquio por boas notícias comerciais.
Esse quadro não pode passar desapercebido pelos negociadores do Mercosul, que portanto se deparam incidentalmente com a conjuntura europeia mais favorável a um acordo entre UE e o mercado sul-americano desde que os dois blocos iniciaram tratativas nesse sentido há quase vinte anos.
Importante também ressaltar que aquilo pactuado em Tóquio não pode ser considerado um acordo comercial de “última geração”. Trata-se essencialmente de um toma lá, dá cá de remoção de tarifas.
Os europeus, por exemplo, eliminam restrições tarifárias à importação de carros japoneses (Toyota, Nissan, Mazda e Suzuki festejam).
Já os japoneses liberalizam seu mercado agroalimentar (salvo o tradicional setor do arroz, é claro) e de bebidas, para alegria de conglomerados europeus como Danone, LVMH e Pernod Ricard.
Isso não significa que estamos de volta ao mundo de tarifas e quotas. A liderança do Japão em recolher os cacos do TPP depois do abandono dos EUA de Trump e recompô-los na forma do CPTPP (sigla em inglês para Acordo Abrangente e Progressivo para uma Parceria Transpacífico), que reúne onze países de Ásia, Oceania e América Latina, mostra como é possível fazer avanços em distintas frentes.
Com os europeus, o Japão passa a ter um acordo comercial mais tradicional. Com as nações do Pacífico sob a égide do TPP, um tratado mais moderno, que inclui dispositivos sobre regras do jogo compartilhadas em compras governamentais ou legislação ambiental e trabalhista.
É revelador também que, seja no tratado firmado ontem com Bruxelas, seja no acordo da Ásia-Pacífico, o Japão não se vê limitado –no escopo da negociação– a circunstâncias geográficas.
O objetivo de um comércio mais livre, complementado por parâmetros jurídicos comuns de competição e integração, mostra-se mais determinante do que a proximidade com seus vizinhos.
Japão e União Europeia, individualmente considerados, continuam a apresentar uma série de perfis protecionistas em seu comércio com outros parceiros. Isso se observa em particular no agronegócio, setor de enorme interesse para os países latino-americanos, que muito ganhariam se japoneses e europeus promovessem uma liberalização “horizontal” de seu mercado agrícola.
Ainda assim, é bom ver que neste cotidiano comercial tão conturbado, Japão e UE, com seu novo acordo, estão desferindo um contragolpe na desglobalização.
Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia