O ministério da Economia divulgou em 24 de agosto três programas básicos voltados para a área social: Renda Brasil, Carteira Verde Amarela, Minha Casa Verde Amarela. A convicção é que eles impulsionarão a retomada do crescimento, via monetização da assistência, criação de empregos e financiamento habitacional.
O governo tenta se reposicionar no mercado. Os programas já existem com outras designações e não estão claras as alterações a serem feitas, nem de onde virão os recursos para custear a nova versão. Há o teto de gastos e ainda está para ser equacionada a questão do auxílio emergencial (pago em decorrência da pandemia), que hoje beneficia 64 milhões de pessoas. Não se sabe como se chegará ao Renda Brasil, que terá caráter mais permanente. A equipe econômica fala em extinguir programas sociais e suprimir o abono salarial para obter receita e o presidente diz que não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
O impasse desgasta, em vez de fortalecer. Aprofundou-se uma rota de colisão que a rigor estava desenhada ainda na campanha de 2018, quando o ultraliberal Paulo Guedes aliou-se a Jair Bolsonaro. A convivência foi mantida enquanto não entrou no radar a disposição eleitoral do presidente, que resolveu antecipar a tentativa de reeleição em 2022. Como observou com precisão o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, o disparo do radar mostrou que “Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral”.
Uma pacificação que deixe o barco singrar mansamente até 2022 parece pouco provável, mesmo que os bombeiros entrem em ação e apaguem as labaredas que ardem no relacionamento do presidente com seu ministro. De novo Paulo Fábio: “Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho”.
Bolsonaro deu um xeque em Paulo Guedes. Suspendeu a criação do Renda Brasil e exigiu que uma nova proposta fosse apresentada a toque de caixa. Chamuscado, o ministro se fingiu de morto e retrucou: “As coisas são assim mesmo: a economia é o cara que faz o papel de mau, e a política é o cara que faz o papel do bom”.
A bagunça fez a tensão crescer no Planalto.
O governo não tem de onde tirar dinheiro, mas quer usar os programas sociais para politizar a relação com a população mais dependente de assistência. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro cobiça o eleitorado do Norte e Nordeste, tido como estratégico. Não pode, por isso, aumentar impostos ao bel-prazer da equipe econômica. Sabe que precisa conter a sangria de votos da classe média, que já é acentuada, ao mesmo tempo em que precisa fidelizar a população mais pobre, o que tem tentado com o auxílio emergencial e os acenos para a repaginação do Bolsa Família. Em ambos os caso, o ultraliberalismo de Guedes é dissonante e não tem serventia.
A trombada do presidente com a equipe econômica deixou mais evidente a ausência de consensos e articulação.
O quadro é agravado pela inconsistência das propostas cozinhadas no Ministério da Economia, que não se apoiam num planejamento estratégico básico e reiteram uma opção fiscalista que colide com a já pesada carga tributária, hoje na casa dos 33% do PIB, além de atritar os planos eleitorais do presidente.
No cenário atual, qualquer proposta do Executivo que chegar à Câmara será modificada e não obedecerá à cartilha governamental. Como disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), “não haverá adesão” a nenhum programa: “Tenho uma preocupação muito grande de que a criação de um projeto de renda básica não signifique nenhuma perda de direito para a população”. Vindas com as digitais de Paulo Guedes, as propostas encontrarão dificuldades.
Além da conhecida falta de visão social, o ministro da Economia não tem qualidade para atuar como negociador. É um criador de problemas, se não mesmo o próprio problema. Sugere fechar a Farmácia Popular, eliminar deduções do Imposto de Renda, recriar a CPMF e criar novos tributos. Fala muito, mas executa pouco.
O fator Guedes
Paulo Guedes é conhecido na praça. Não foi por acaso que chegou ao governo Bolsonaro. Seu radicalismo neoliberal compôs-se sem dificuldade com o autoritarismo do presidente. O “Posto Ipiranga” deu a Bolsonaro um programa mínimo com que caminhar para além da guerra cultural contra a democracia, os liberais e as esquerdas. Esta contribuição um dia será cobrada, pois não há indícios sólidos de que a política de Guedes fará o País crescer a taxas suficientes para a vida melhorar como um todo. A pandemia é um agravante, mas não explica o fracasso.
O programa de Guedes apoia-se numa visão tosca de mercado e livre concorrência. É hostil aos trabalhadores e a políticas sociais de proteção e distribuição de renda. Caminha de costas para os temas ambientais e não está nem aí para o desmatamento amazônico. É uma forma de autoritarismo econômico, combinado com egoísmo e darwinismo social. Não tem, por isso, dificuldade de conviver com o bolsonarismo.
Tudo isso implica um custo social elevado. Quem pagará a conta das “maldades” antissociais e da inação governamental? Paulo Guedes enviou ao Congresso uma proposta de reforma tributária sugerindo 12% de impostos para os serviços, 6% para os bancos. Igrejas, partidos e fundações — que em tese não exercem atividade econômica – ficariam isentos. Por baixo do pano, para piorar, a ideia é recriar a CPMF, agora com novo nome e voltada taxar “transações eletrônicas”, típicas da vida digital.
Pode-se admitir que as propostas do ministério da Economia carregam no remédio com o propósito de abrir negociação. Depois serão suavizadas. Faz parte do jogo, mas chama atenção a crueldade que está nela embutida. Drenar recursos dos mais pobres e poupar os mais ricos, com a desculpa de transferir recursos para os pobríssimos, via uma rebatizada Bolsa Família, é uma perspectiva perversa e pouco lógica. Os economistas do governo acenam, também, com uma perspectiva de “desoneração da folha”, que já foi vetada pelo presidente meses atrás. Ninguém sabe bem como ficará.
Guedes é desses casos perdidos na política nacional. Não é economista brilhante, fez carreira como operador financeiro e sempre manifestou desprezo pela economia do setor público. Seus olhos brilham quando se apresenta como guardião do mercado. Sua competência, porém, nunca foi verdadeiramente posta à prova. Desde que passou a integrar o governo fala muito em reforma, mas não entregou nada até agora. É um péssimo negociador, mercurial e sem estofo político.
Em busca do eleitor
O governo trata como assentado que a população mais carente está à disposição dos governantes de plantão. Esse tem sido um caminho trilhado por governos anteriores. A “ocupação” político-eleitoral feita pelo PT no Nordeste, por exemplo, não evitou o impeachment de Dilma, nem garantiu sobrevida sólida ao petismo. No caso de Bolsonaro, pode ser ainda mais complicado, levando-se em conta que ele não dispõe de estrutura partidária e se move por meios de redes, que nem sempre são acessíveis à população de menor renda.
O governo deseja disputar o eleitorado nordestino, que pode de fato estar novamente disponível depois da crise do PT. Mas não há certeza de que conseguirá isso, em parte porque o eleitorado pode não ser tão “cativo” quanto se imagina, e em parte porque os estados do Nordeste são, na maioria, governados por partidos que se opõem a Bolsonaro.
As propostas anunciadas pelo ministério da Economia repõem o conflito entre o fiscalismo de Paulo Guedes e o desenvolvimentismo, bandeira ora desfraldada por Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, que saiu do PSDB e migrou de mala e cuia para o governo Bolsonaro. Colidem também com a movimentação eleitoral do presidente. O Estado está mal das pernas, a tentação de cortar gastos é enorme e a tesoura de Guedes é seletiva e particularmente hostil à situação da maioria da população. O bolsonarismo, e em especial o presidente, não tem um programa claro nem uma “teoria” sobre o País que deseja governar. O impasse, portanto, é gritante.
Precisamente por isso, Bolsonaro tenta se equilibrar em duas canoas, dando sinais contraditórios e sem saber qual estrada seguirá até 2022. Não é propriamente uma demonstração de força. E ele sabe disso.
E a oposição?
Em um ambiente de crise externa e de tensão interna ao governo, seria o caso de dar como certo que as oposições crescerão em protagonismo. Não é, porém, o que se tem.
O jogo não está sob controle delas. Os interesses reunidos no bloco que sustenta Bolsonaro seguem pautando a política. O extremismo ideológico do presidente parece a cada dia mais incomodado com o ultraliberalismo de Guedes, mas algum arranjo poderá acalmar a situação. Pesquisas de opinião, favoráveis ao governo, fornecem oxigênio adicional para o continuísmo. A paralisia domina as forças do centro e da esquerda, com exceção do DEM, graças ao ativismo institucional de Rodrigo Maia. O PT reitera sua permanente disposição de fazer carreira-solo e os demais partidos somente praticam o jogo miúdo. Há pouco esforço de agregação e articulação que comece a pavimentar a pista para 2022.
Não é difícil compreender que, mantidas a disputa e a dispersão no terreno do centro e da esquerda, sem a interpelação da sociedade civil e sem a incorporação dos dissidentes bolsonaristas, 2022 será uma repetição, corrigida aqui e ali, do que houve em 2018.
O diagnóstico de Paulo Fábio Dantas Neto vai ao ponto: “DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço. Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil – sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último”.
Esse é o nervo da questão política atual. E é para ele que precisam convergir as atenções e energias dos democratas.
*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP.