Marco Aurélio Nogueira: Os democratas norte-americanos e seus demônios

Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.
Foto: RS
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Foto: RS .

Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.

As alas à esquerda costumam ser mais combativas, como é de esperar. Vocalizam grupos enraizados no mundo cultural e acadêmico. São expressivas nos movimentos por direitos e reconhecimento. Fazem política de um modo particular, no qual a ideologia e o simbolismo têm papel de destaque. Renegam o pragmatismo e gostam de promover o desgaste das candidaturas partidárias, sobretudo as presidenciais. Alegam que a pressão interna é decisiva para que o Partido Democrata não esmoreça e combata o sistema.

Em 2016, fuzilaram Hillary Clinton e contribuíram, indiretamente, para afastar eleitores progressistas ou predispostos a apoiar a candidata do partido. Os demônios partidários terminaram por tirar parte dos votos de Hillary.

Estão ensaiando fazer o mesmo hoje, mediante a interposição de vetos (discretos ou ostensivos) a Joe Biden e à escolha da senadora Kamala Harris como sua companheira de chapa. As ressalvas se apoiam em críticas à “elite democrática”, que só olharia para os próprios interesses, não ouviria as vozes mais jovens nem daria a devida ênfase às questões identitárias e às reformas sociais. Em certos setores, dá-se maior importância ao passado de Kamala Harris – que foi procuradora do estado da Califórnia – que a seu significado político na disputa eleitoral de 2020. Chega-se mesmo a dizer que a senadora é uma “policial” travestida de democrata e indiferente aos eleitores negros mais jovens.

Ainda faltam três longos meses para as urnas e pode ser que o furor esquerdista arrefeça. Vozes importantes, como Bernie Sanders, não estão a insuflar os ventos da discórdia, o que é um sinal unitário significativo, que reconhece a dimensão estratégica da atual disputa eleitoral. Uma vitória sobre Donald Trump é vista como uma espécie de tábua da salvação para os democratas, um impulso para que o partido volte a ser pujante e recupere sua marca política e social.

A escolha de Kamala Harris como vice-presidente foi inteligente. Negra, feminista, militante de direitos civis e com larga experiência administrativa, a senadora é uma moderada na arena partidária. A ideia é que ela atraia votos de setores que se abstiveram em eleições anteriores, dialogue com o movimento negro e por direitos civis sem, ao mesmo tempo, assustar os eleitores republicanos.

Trump sentiu o golpe e tem se dedicado a bater insistentemente em Kamala.

Ao opor vetos ideológicos à chapa de Joe Biden, os esquerdistas mais inflamados reforçam aquela “abdicação pelo imaginário americano” que o professor Mark Lilla (em O progressista de ontem e o do amanhã, publicado em 2017 pela Companhia das Letras) entende ser a principal fragilidade dos liberals, ou seja, dos democratas. Dizem pouco para o americano comum, as grandes multidões, ajudando a empurrar os democratas para “as cavernas que construíram para si próprios na encosta do que um dia foi uma grande montanha”, nas palavras de Lilla.

O professor é um crítico firme das inflexões identitárias que adquiriram expressivo peso no movimento social e nas áreas intelectuais próximas do Partido Democrata. Na sua visão, tais inflexões enfraquecem a solidariedade social e incentivam o populismo, com o enfraquecimento da dimensão institucional da cidadania. De quebra, põem em circulação uma “pseudopolítica de autoestima e autodefinição estreita e excludente”, que celebra um posicionamento refratário a avanços políticos consistentes, trocando-o por uma “evangelização” de baixa produtividade política. A diferença, para Lilla, é que “evangelizar é dizer verdades ao poder e fazer política é conquistar o poder para defender a verdade”.

O que vale para os Estados Unidos vale também para outras sociedades. A insistência em demarcar identidades partidárias ou ideológicas tem sido, em todas as partes, o laço que asfixia as forças democráticas e impede sua articulação. A eventual derrota de Trump em novembro próximo terá impacto significativo e poderá representar uma nova temporada de florescência democrática, com efeitos que se espalharão pelo mundo.

*Professor titular de teoria política da Unesp

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