Se conseguirmos suportar o impacto da doença e não formos muito atrapalhados por governantes inescrupulosos, o vírus será controlado. A pandemia, porém, deixará marcas profundas
Pandemias já houve muitas na história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.
A gripe espanhola (1917-1918), “a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.
Antes dela houve a epidemia da cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento básico e higiene.
A “peste negra”, a peste bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352. Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da população europeia à época.
Depois da gripe espanhola, o mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos), dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em 2009 foi a Gripe Suina (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300 mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.
O que há de diferente na pandemia do novo coronavírus?
Primeiro de tudo, ela é a primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, à agressão ao meio ambiente.
A época também é de crise da política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de “obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser debelada.
Como lembrou Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.
Em segundo lugar, a pandemia atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos, pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.
Por outro lado, porém, essa nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do “negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.
O COVID-19 irrompeu num momento de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.
Se os humanos conseguirem suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida, porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se trabalha, os relacionamentos, a política.
O sistema produtivo conhecerá crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a por em xeque o desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental, sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.
O problema é que falta uma alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um “vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.
Poderá até ser pior. Em vez de reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do “nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp