Muito barulho nas redes e nos corredores universitários por causa da manifestação do ministro da Educação, Mendonça Filho, contestando o oferecimento, na Universidade de Brasília, de uma disciplina escolar sobre o impeachment de Dilma Rousseff.
Em solidariedade, professores de outras instituições acadêmicas (Unicamp e Federal da Bahia) propuseram-se a seguir o exemplo da UnB.
Surpreende que tanto alvoroço esteja sendo criado em torno de um fato corriqueiro.
Não é de hoje que as faculdades de Humanas vivem às voltas com a questão de definir que conteúdo programático oferecer aos estudantes. Sempre há controvérsias. As disciplinas das diferentes áreas de conhecimento estão mergulhadas nos embates políticos e ideológicos da época e nas pulsões a ela correspondentes, cabendo aos professores zelar tanto pela liberdade de cátedra quanto pelo rigor teórico e conceitual. Uma sala de aula não pode ser tribuna para a apresentação categórica das preferências ou idiossincrasias filosóficas do professor, nem muito menos espaço para a defesa militante de interesses políticos ou partidários.
A questão é tão complicada que sempre se recorre àquilo que o sociólogo alemão Max Weber chamava de “liberdade em relação aos valores”, procedimento também chamado de “neutralidade axiológica”. Com isso, Weber pretendia demonstrar que não há como excluir os valores do trabalho científico ou docente mas, por isso mesmo, é preciso manter certo controle sobre eles, para que o conhecimento não seja indevidamente invadido por considerações de ordem política ou moral. Tudo depende sempre de escolhas valorativas e opções subjetivas, que precisam ser adequadamente integradas ao processo científico. Não há “imparcialidade” absoluta e tudo passa por uma relação dinâmica com os diferentes pontos de vista que coexistem na sociedade e na época. Não se trata de encontrar um “compromisso” entre tais pontos de vista antagônicos, que lutam entre si, mas de centrar o foco na descoberta da verdade, fim último da ciência.
É uma discussão complexa, difícil.
Diferentemente do que ocorre no ensino fundamental e médio, na universidade o risco de “doutrinação” é pequeno, pois os alunos já têm ideias próprias e sabem se proteger. Mas o proselitismo corre solto. É parte do jogo, gostemos ou não.
O professor não pode agir como porta-voz de grupos, partidos ou movimentos, ainda que deva se apresentar por inteiro, desde logo e com suas convicções. Não tem o direito de fazer de sua cátedra uma correia de transmissão de “verdades discutíveis” ou uma caixa de ressonância daquilo que considera serem as “injustiças do mundo” ou o “clamor popular”. Sua obrigação é oferecer análises criteriosas que mostrem as implicações fundamentais, as determinações e os conceitos com que podem ser examinados os temas. Precisa saber equilibrar convicção e responsabilidade. Sua missão é disseminar serenidade e ponderação, não conclamar os estudantes ao “engajamento político”. Ele não é um prosélito, nem um agitador.
A liberdade acadêmica que vigora nos campi universitários implica a discussão com os estudantes de problemas que o corpo docente considera relevantes para sua formação. Os departamentos acadêmicos são livres para definir o conteúdo das matérias a serem oferecidas aos alunos. Muitas vezes os temas são polêmicos e ainda não estão devidamente processados em termos científicos. Estão, por assim dizer, na fronteira, no lusco-fusco, flutuando entre a pesquisa e a curiosidade, entre o senso comum, a denúncia e a reflexão crítica.
Não deveria haver dúvida de que a análise do impeachment é um ponto importante, que merece ser estudado, debatido, investigado. Especialmente nas faculdades de Humanas, o cotidiano é atravessado por discussões feitas “à quente”, que aparecem até mesmo nas disciplinas que não estão direcionadas para a análise de conjuntura política do país. Nada a estranhar, portanto, que alguns professores procurem sistematizar essas discussões e dar elas um pouco de organização. Eles estão levando para dentro de suas aulas aquilo que rola fora delas. Pode haver um exagerado senso de oportunidade, mas, se capricharem na organização e se dedicarem a manter o padrão acadêmico, poderão ajudar os estudantes a ter uma visão mais criteriosa do processo político brasileiro, nele incluindo o impeachment de Dilma, a crise do PT e os males que a corrupção vem causando ao partido, as características do lulismo, o funcionamento das instituições políticas e jurídicas do país, o governo de Michel Temer, e assim por diante.
A questão e o perrengue só surgiram porque os professores resolveram associar ao impeachment a palavra “golpe”, o que sugeriu um alinhamento automático às diretrizes das oposições petistas e lulistas posteriores ao fim do governo Dilma. Ao fazerem isso — reiterando uma denúncia já ultrapassada pela dinâmica política real — terminaram por tomar uma posição que antecipa as conclusões a que as próprias disciplinas deveriam chegar. As propostas assumiram unilateralmente que o processo que destituiu Dilma foi feito fora da lei e da constitucionalidade vigente, implicando a “ruptura da democracia”, o “retrocesso nos direitos” e a “restrição às liberdades”.
Alimentaram, assim, uma fogueira que, a essa altura, já deveria estar apagada.
Foi o que bastou para que o ministro da Educação se encrespasse, mostrando sua dificuldade de conviver com o contraditório. Nem ele, nem o governo que integra, nem os que apoiaram o afastamento de Dilma aceitam ser vistos como “golpistas” e nem pensam que o processo violentou as normas legais do país. Nenhum “golpe” de fato aconteceu, a não ser no sentido genérico de “manobra política” ou de “golpe parlamentar”. Mas ninguém tem o direito de vetar as atividades dos que pensam de outro modo.
A declaração de Mendonça Filho de que se deve “lamentar que uma instituição respeitada e importante como a Universidade de Brasília faça uso do espaço público para promoção de militância político-partidária” é, no mínimo, inadequada. Tanto que a Comissão de Ética Pública da Presidência o intimou, no prazo de dez dias, a prestar esclarecimentos em processo que apura se cometeu abuso de autoridade no exercício do poder. É uma declaração-bumerangue, que se volta contra o ministro e dá fôlego aos que ele gostaria de atingir, permitindo-lhes denunciar o contexto “autoritário” em que se estaria viver. Ajuda a consolidar a imagem de um governo receoso, que teme o que se passa no recôndito de auditórios universitários e salas de aula.
Como tudo anda fora do eixo no debate político nacional, aquilo que deveria ser rotina virou caso extraordinário, ganhando uma dimensão excepcional e uma partidarização desnecessária. Com a elevação artificial da temperatura, as disciplinas passaram a ser vistas como sendo parte da tática petista de denunciar “golpes” para justificar a derrota política do partido.
Enquanto a sociedade exibe suas chagas e espera respostas, abrem-se discussões diversionistas para descobrir se houve ou não um “golpe” no Brasil, se professores podem ou não debater os acontecimentos recentes de nossa vida política, se um governo tem autoridade para questionar o que se passa dentro das universidades.
É muita perda de tempo.
Deveríamos todos deixar o barco navegar. Nada ocorrerá de grave se alguns estudantes participarem de debates falando de “golpes” e de “retrocesso democrático”, até porque a maioria deles, nas faculdades de Humanas, já pensa assim e os que não pensam poderão contra-argumentar ou simplesmente não assistir ao curso. Não dá para saber como as aulas transcorrerão e não há porque dizer, de antemão, que elas darão ensejo à “doutrinação” dos meninos e meninas ou que não passarão de mera manifestação “panfletária”.
A razão – nesse caso e em vários outros – pega carona nas asas da coruja de Minerva, que só alça voo ao entardecer.