Nada autoriza a que se projete um atalho que engavete a democracia representativa
A vida é feita de crises. Conflitos e disputas alimentam as interações humanas como o ar que se respira. A própria dinâmica social, contraditória e movida a antagonismos, faz os sistemas inventados para prover a sociedade de recursos de sobrevivência entrarem em desajuste e perderem eficácia. É uma constante.
Devemos desdramatizar a ideia de “crise” para que sejamos capazes de assimilá-la e compreendê-la. Não há por que temer o que é parte da vida.
Crise não é sinônimo de fim ou morte. Não implica que uma situação “crítica” se reproduza de forma catastrófica. Uma crise de governo não anuncia o fim do governo, mas sim que algumas de suas condutas e opções já não bastam para sustentá-lo. Uma crise econômica tem indicadores claros – recessão, desemprego, redução do consumo, inflação, fuga de investimentos –, mas não se traduz necessariamente em colapso, podendo, porém, significar que um padrão de acumulação ou uma orientação macroeconômica atingiram o esgotamento.
Nossa época está assentada num sistema produtivo altamente dinâmico, competitivo e predatório, que não respeita limites nem fronteiras, que se faz exigindo o máximo de todos os agentes, em especial os do mundo do trabalho. O capitalismo consolidou-se como sistema mundial e ganha fôlego com a incorporação de tecnologias que repercutem nos diferentes níveis de vida, abalando as estruturas sociais, as ideias, as práticas, as formas de organização e o Estado como um todo. Somos protagonistas de uma era de crises.
Crises são como terremotos, que recebem pontuações que indicam a potência destrutiva que carregam. Há crises e crises. Algumas não passam de abalos ligeiros, que nem sequer sentimos. Mesmo que provoquem paralisia e desorganização, seus efeitos são positivos: ajudam-nos a compreender o que não funciona e facilitam a eliminação de células mortas. Outras se estendem no tempo e corroem os corpos em que se instalam. Todas indicam a necessidade de uma transformação, mas algumas exigem mudanças profundas, que demandam exercícios intelectuais sofisticados, operações complexas e tratativas difíceis. Neste segundo caso, sobretudo, as crises prolongam-se como um mal-estar que produz efeitos perversos, retira vigor de soluções antes vitoriosas e desorganiza o que está estabelecido, contaminando a vida social. Tais crises exigem que os sistemas saiam em busca de novos pontos de equilíbrio, com os quais possam voltar a funcionar adequadamente.
O mundo atual conhece crises desse segundo tipo. Muitas sociedades, talvez todas, estão mergulhadas nelas. São partidos políticos que desaparecem, tecnologias que se tornam obsoletas, formas de gestão e de organização produtiva que fracassam, buracos que se formam por todos os lados e, ao atingirem a esfera política, levam à emergência de líderes salvacionistas improváveis, fundamentalismos regressistas, desentendimentos e polarizações paralisantes, como que a anunciar a abertura de uma época de cegueira cívica, na qual os cidadãos não sabem bem o que desejam, o que podem conseguir e o que devem fazer para delinear um futuro melhor.
Crises assim são crises políticas: enraízam-se no chão da sociedade, contagiam as pessoas e atingem o Estado, não somente os sistemas políticos em senti- do estrito. Além de cegar os cidadãos, também bloqueiam a deliberação democrática, o processo de tomada de decisões e a formulação de políticas públicas.
O Brasil aparece aí de corpo inteiro. Mas o problema não é somente brasileiro. A crise política globalizou-se, em sintonia com a globalização capitalista. A economia, a cultura e a sociedade mundializaram-se, mas a política permaneceu “nacional”. A ausência de um “Estado mundial” faz com que o sistema internacional fique “fora de ordem”.
No plano das nações – no Brasil, por exemplo – ocorre um efeito parecido: a economia, a sociedade e a cultura transformam-se graças à globalização e à revolução tecnológica, modernizam-se, mas a política não consegue acompanhá-las; ingressa assim numa condição de sofrimento, desestruturan-dose. Os sistemas nacionais giram em falso, impulsionados pelos efeitos da globalização.
A crise política atual é uma crise da política. Diz respeito a regras, sistemas e procedimentos, mas afeta hábitos, condutas e valores éticos com os quais se pratica, se pensa e se acolhe a política. Não se trata de um simples “defeito institucional”. O desarranjo sistêmico – que não é catastrófico – desdobra-se num descompasso entre Estado e sociedade, governantes e governados, representantes e representados. Trata-se de uma crise do Estado em seu conjunto, que envolve a todos num abraço totalizante.
Uma crise dessa magnitude não pode ser vencida somente com reformas institucionais, por mais importantes que elas possam ser. Requer uma abrangente pedagogia democrática, que valorize a dimensão pública da vida e agite os humores sociais em sentido progressista, civilizador.
No que diz respeito particularmente à democracia representativa, pode-se dizer, parafraseando Norberto Bobbio, que ela não conseguiu cumprir algumas de suas maiores promessas. Mas está viva, em transformação. Nas últimas décadas foi capturada pelo mercado e pelas oligarquias (políticas, corporativas, empresariais), perdendo pujança e entrando em tensão com as expectativas cívicas. Um deslocamento se processou: a democracia passou a ser vivida mais nos espaços societais “desregulados” do que no plano do Estado e dos sistemas políticos.
Mas nada autoriza a que se projete um atalho que engavete a democracia representativa e a confronte com alguma modalidade de “democracia direta”. O caminho mais profícuo parece ser o de se repaginar a democracia e o governo representativo, soltar suas amarras, para que se reencontrem com a cidadania ativa e com uma alteridade que não se renda ao fascínio das “diferenças”, dinamizando e qualificando o convívio social.